Clube das Almas Inquietas

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terça-feira, outubro 28, 2003

A RUA DE MINHA INFÂNCIA

Volto à rua de minha infância numa tarde de domingo e chuva. Madeleines tropicais tem corpos e falam: O aniversário de uma tia trouxe de volta familiares não mais familiares que se cumprimentam efusivos, antigos vizinhos a trocar mentiras gentis, velhos amigos se abraçam, se olham e se reconhecem.
Os nomes, os rostos, parecem saídos de um livro infantil, atualizados por um mago gozador, que vai pondo rugas em todos, vincando expressões, encurvando e diminuindo corpos, ao passo que eu mesma, numa mágica inversa, rejuvenescida, volto a ser a menina de 30 anos atrás.
A rua de minha infância é aquela das férias, quando o verão se aproximava e eu podia, finalmente, atravessar o portão, brincar com as outras crianças e jogar queimado e pique esconde. Eu sabia quando o verão estava para chegar pelo anúncio das mariposas e cupins que surgiam do nada, aos borbotões, dançando a ave maria em volta dos postes de luz, entrando pelas casas, ensandecidos com as lâmpadas e luzes acesas ao anoitecer.
Corríamos pela casa, fechando janelas e portas, numa tentativa vã de deixar de fora os danados que largavam suas asas e se multiplicavam, caminhando sobre móveis, comidas, chão, paredes, entrando até em algum nariz ou boca descuidadamente aberto.
A família a espalhar bacias e panelas, cheios de águas, postados em embaixo de algumas luzes, para que, ao ver a luz refletida na água, os cupins viessem ali se afogar.
Empolgada e imbuída do mesmo espírito devocional de Torquemada, eu movia a bacia para mais perto das luzes, provocando, iludindo, forçando mesmo os cupins mais cautelosos e sensatos a se afogar na água, já coalhada de corpos.
Minha rua, proibida o ano todo, se oferecia a mim, finalmente. Como se libertando minha crueldade eu antevisse a liberdade maior das férias, do verão e da rua.
Ao rever aquelas pessoas, redescubro meu olhar de criança, e me surpreendo ao vê-los envelhecidos. Percebo que eu, também, envelheci. Encontro, com exatidão, não sei se com prazer, meu lugar no tempo. Mas, percebo também, que meu anseio de liberdade se manteve comigo.

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