Clube das Almas Inquietas

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quinta-feira, dezembro 11, 2003

OUTRA VARIAÇÃO SOBRE UMA AULA DE DANÇA

Meu professor de dança chegou com uma novidade. Em vez de treinarmos os passos marcados da dança de salão, ele disse:
- Vou dançar como meu avô dançava...
Lá fomos nós, de rosto colado, ele dançando e eu seguindo, ou melhor, tentando seguir seus passos que se alteravam numa variação infinita de movimentos e direções.
Mesmo acostumada a dançar com ele, eu me perdia e ficava aflita em segui-lo. Na forma tradicional de dançar, bastava olhar para seu rosto ou movimento corporal e, sabendo os passos, bastava ficar atenta para eu saber oq ue iria acontecer, para onde ele ia ou o que pretendia. Desta nova forma, o repouso que me dava "ler" visualmente suas intenções, se perdia com o rosto colado. Não mais via para onde íamos. Não havia nenhuma marcação definida, apenas o ritmo da música, o toque de suas mãos e a percepção de meu corpo, junto ao dele, para me guiar.
Chegamos ao final da dança, sem grandes percalços, mas confesso que o prazer que sempre tenho não tinha existido. Estava cansada, aliviada com o fim da dança. Tinha ficado tensa, mais preocupada em não errar do que no prazer de dançar.
Ele me pergunta o que achei e lhe respondo da estranheza desse novo modo, congratulando-me, no entanto, por não ter lhe pisado os pés nem tropeçado nos meus mais do que o que se pode chamar de razoável.
Meu professor comenta:
- Você sentiu que não houve a cumplicidade que a gente sempre tem.
É, não houve.
Contei-lhe sobre minha necessidade em ver, para poder antecipar o movimento do outro, de me certificar de que seria capaz de acompanhar, corresponder ao esperado.
Ele me sugere apenas ouvir, sentir e me deixar levar.
Custo a perceber de que ele está falando em confiança - quando me diz que nessa intimidade é possivel ir com o corpo à frente sem o receio de atropelar ou ser atropelado.
Dançamos outra música. Fecho os olhos, descanso meu rosto no dele e me deixo levar pelo ritmo, pela melodia e por sua condução.
Dançamos e, apesar dos erros, foi uma delícia. Ele fez passos muito mais complicados, mudou o ritmo, "brincou” com a música e com o corpo.
Ao final, meu professor comentou que eu tinha ficado mais solta e tinha havido muito mais harmonia entre nós.
Eu percebera que o segredo era confiar. Ele me mostrara,sem nada dizer, que não me deixaria cair, nem me abandonaria no meio do salão.
Aprendi que posso confiar nele como parceiro sabendo que, mesmo que eu erre, ele não vai persistir no passo dele, aumentando a distância que eu possa ter causado, mas, ao contrário, vai adequar seu passo para que eu reencontre meu lugar junto a ele.
Aprendi a confiar que um passo errado não estraga nossa dança nem nos transforma, irremediavelmente, em péssimos dançarinos.
Aprendi que mais importante que o passo é a parceria.
Pude me entregar, porque confiava. Ele pode ousar porque confiava no meu desejo de permanecer junto a ele.
Sem essa confiabilidade intrínseca jamais poderíamos ter dançado como dançamos. Sem ela, ele não poderia ter liberdade de fazer variações e eu não teria a liberdade em consentir e usufruir destas variações, porque estaria tão preocupada com a falta de liberdade de não errar, que mesmo que eu não tivesse errado nada, não teria ganho muita coisa exceto o "conforto" relativo do não erro.
O resto da aula transcorreu dessa forma. Do bolero passamos ao forró e ao baião. Danças intimistas, coladas, onde o espaço é compartilhado quase por completo, meu corpo cedendo lugar ao dele e vice-versa, no ritmo. Nem sabia o que meus pés faziam, e nem pensava sobre isso, deixando o corpo sentir, ler, ver e ouvir.
A hora voou e quando nos demos conta, meu jovem mestre já estava atrasado para sua próxima aula.
Ele não sabe que, mais do que dança, me ensina sobre viver.

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1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Teus textos são muito bons... vejo muito do que se passa na minha vida neles... parabéns...

8:25 PM  

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