Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

domingo, dezembro 21, 2003

EGO, CAMARÃO E HORTALIÇAS



O telefone toca. A amiga pergunta se vou à feira.
-Hoje não, pode me comprar dois pés de alface e um quilo de camarão?
-Quer passar aqui para pegar o dinheiro ou te pago depois?
-Depois a gente acerta, mas com juros, viu?
-Só se for muito “juro que pago...”.
Mais tarde, o encontro no portão do edifício.
No meio da correria do dia, o sorriso no rosto da amiga é afago de irmã. Tanta coisa para ser - mãe, mulher, dona de casa, profissional, ai cansaço, que bom que trouxe, obrigado amiga, quanto devo. Com a encomenda, um recado:
-Sabe o moreno da barraca de verdura? Assim que me viu, sem você, perguntou: Cadê a “lindona” da sua amiga?
A mão sobe automática aos cabelos, dedos em arremedo de pente, busto levantado, Vênus invocada.
A amiga percebe o gesto vaidoso, não perde a chance:
-Tá precisando operar a catarata, tadinho.
-Pura inveja, meu bem...O rapaz tem um senso estético apuradíssimo. Se não te chamou de lindona, azar o seu!
O riso desmente o azedume da resposta. Mais que irmãs, parceiras, melhor que isso, cúmplices. Cúmplices na implicância, nos segredos, nos medos e dores, na ida à feira, na briga e na vida.
Na porta do prédio, verduras, frutas, legumes e camarão como testemunhas do tempo roubado `a casa. Meninas de novo, trocando descobertas, especialistas inventadas, descrevendo, pura ciência do humor, os efeitos terapêuticos da feira livre nos egos femininos.
-O bem que faz essa ida, imagine você. Quem vai aos hortifrutis da vida ou ao mercado, quem simplesmente coloca no carrinho de compras o produto embalado, não sabe que ir à feira é mais que trazer produtos frescos para a mesa. Feira é outra coisa. A feira é encontro. Feira é descoberta. Feira é onde se ganha, livremente, generosamente, junto com os legumes, uma restauradora massagem no ego. Feira é spa de ego.
-Olha o que um disse, que figura, adorei, ah é bom, né?
-Princesa, chegue mais, prove aqui, esta melancia está mais doce que você...Um pedaço prá provar...
- Minha linda, o que vai levar hoje?
- Senhorita!
Senhorita? Linda? Princesa?
Sou eu. Sou eu, sim. As palavras bordam pérolas na camiseta de propaganda, os anos escoam do rosto e da alma, manto e cetro tecidos em brins de veludo. O elogio vende laranja? Que seja. Meu ganho é maior. Compro três dúzias, mais dúzia e meia de tangerinas e um saquinho de limão, ainda por cima. Para lindas senhoritas, a compra, é mero detalhe.
O granjeiro, reverente, anuncia:
-Madame, está tudo fresquinho, como a senhora merece...
Rainhas, recebendo um tributo merecido.
E o barraqueiro das frutas? Ah, o barraqueiro... O barraqueiro que lhe chama de gata, que oferece uvas com a solicitude de um escravo núbio e o sorriso sedutor de um Casanova imigrante. Gato é ele, no auge dos trinta anos, tesão de cara e corpo. Casanova? Não! Erro de personagem. Don Juan, o sedutor, desvelando na mulher diante dele, a beleza que já existia nela, só que escondida.
Isso é o que a feira dá, não vende.
O carrinho carregado de compras, bocas a alimentar, só traz o excedente. O ego, já nutrido, cuidado, torna mais leve o passo, mais altaneiro o porte, na volta. O movimento do quadril se enlaça ao olhar do feirante, os dois, conscientes, lembrando e lembrados que foram do feminino coquete que existe em toda mulher.
Na porta do prédio, o pacote de camarão pinga, o papel cinza colado no plástico, clama por gelo e limpeza. A despedida agora é breve, o tempo urge. Vão para suas casas, as amigas, lembranças compartilhadas, como a alegria e o riso, desnudando o prazer de ser mulher, tantas vezes encoberto pela poeira do descuido.

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