Nestes tempos de cegueira, pouco tempo, pouca criatividade e muitos problemas na minha cidade, transcrevo a coluna genial de João Ubaldo Ribeiro em 18/04/2004.
Pensadores como João Ubaldo ainda sustentam um pouco de minha fé, bastante abalada, na natureza humana, especialmente na classe política. Essa, recebe mais que minha descrença. recebe minha repulsa.
Associando com a solução irônica proposta por João para resolver os problemas de segurança do Rio, vejo a manchete da primeira página e leio sobre o enterro do líder do Hamas. Independente de minha opinião sobre o conflito entre Israel e Palestina,
não consigo entender como o mesmo povo que sofreu as barbáries nazistas, identifica-se com o agressor e passa também a cometer assassinatos ostensivos e justificados.
Homo lupus homini.
Bem, acho melhor dar a palavra ao João.
Eu sou leal
JOÃO UBALDO RIBEIRO
Estava demorando um pouco, mas acabou aparecendo neste governo também. Como se sabe, a imprensa é culpada de tudo o que acontece de ruim. Tem sempre sido assim e não vai mudar. Volta e meia alguém se lembra de que o jornalismo é uma profissão perigosa, mas pouca gente de fato se preocupa com isso, até porque o perigo só é visível para a maioria quando os jornalistas estão cumprindo missões como a cobertura de guerras. Mas o perigo é bem mais amplo e, nesta minha já não tão curta vida, tenho sabido de jornalistas assassinados, agredidos, presos e até obrigados a um tipo de gastronomia peculiar à øprofissão: comer o jornal em que se escreveu alguma coisa que causou o problema denunciado. Comer jornais pode até não ser tão usual hoje em dia, a não ser que o Fome Zero tenha feito mais progressos do que os divulgados, mas, quando comecei a carreira, na Bahia, era corriqueiro, principalmente no interior. Acredito que, com a crescente desvalorização da vida, esse costume vem sendo substituído pelo assassinato mesmo. Sai mais prático e sem tantos problemas, eis que matar ou mandar matar alguém está muito fácil hoje em dia e, segundo me contam, a concorrência é tal que o serviço pode sair por algumas poucas centenas de reais, talvez pagos com cheques pré-datados ou vales-transporte.
Agora mesmo, devemos estar assistindo, no Rio de Janeiro, a uma dessas grotescas armações da imprensa. Por falta de tempo, assisto a pouca televisão, mas, de vez em quando, passo pelo aparelho ligado, dou uma espiadinha e levo algum tempo sem saber se estão mostrando o Iraque, o Afeganistão, o Oriente Médio ou o Rio mesmo. Às vezes, é complicado distinguir, pois não é que a imprensa resolveu inventar que está havendo combates de rua no Rio e que morre mais gente de tiro aqui no Brasil do que em muitos países oficialmente em guerra? É de pasmar. Claro que ninguém tem medo de sair à rua no Rio e que os moradores da Rocinha, por exemplo, estão inventando coisas, querendo aparecer. Mais um dos males da imprensa, dar espaço a quem quer simplesmente seus quinze minutos de fama.
Não sei aonde é que tudo isso vai chegar, mas já se comenta amplamente a idéia de construir muros no Rio de Janeiro, para segregar áreas perigosas. Vejam vocês que absurdo, nós aqui na mesma situação de Berlim no tempo da Guerra Fria ou de Gaza, nos tempos de hoje. Com certeza foram as ondas irracionais inventadas pela imprensa que fizeram praticamente todos os edifícios do Rio se cercarem de grades, transformando moradores e trabalhadores em prisioneiros. Agora vem esse negócio de muros. Ninguém duvide de que eles serão erguidos e a providência seguinte vai ser a instituição de postos de fiscalização, onde os transeuntes terão de mostrar passaportes para poder entrar ou sair de áreas muradas, além de outras medidas, certamente a serem mais tarde sugeridas, como a identificação e fichamento da cada cidadão morador de área murada. Aliás, já que é a imprensa mesmo que tem e acaba por fazer implantar essas idéias, sugiro logo que, doravante, só se possa circular com crachás contendo dados básicos sobre os portadores. Ou melhor, crachás não, porque as falsificações virão logo. Tatuagens, tatuagens devem ser a solução. São indeléveis e a Casa da Moeda poderia criar modelos de difícil alteração. A idéia não é nova, até porque usada pelos nazistas em campos de concentração, mas tem seus méritos e a exponho aqui como modesta achega. O lugar para as tatuagens é que podia mudar, porque os nazistas as faziam nos braços das vítimas e aqui podemos inovar, aplicando-as logo nas testas. Com um pouco de marketing e, naturalmente, a famosa vontade política, isso podia até virar moda em outras partes do mundo.
Falo neste assunto porque me tocou fundo a exortação de nossos líderes, notadamente o presidente da República (se não foi ele quem falou, trata-se de mais uma mentira da imprensa; a imprensa mente que não se sente, como falava minha avó), quanto à lealdade da imprensa. Pela parte que me toca, fiquei meio chateado, porque nunca me imaginei desleal. É difícil julgar nosso próprio comportamento, mas creio que tenho sido leal. Posso citar logo um exemplo que considero irretocável. Como muita gente, jornalistas ou não, há bastante tempo acho que o presidente, por falta de prática, não trabalha. Por favor, não me entendam mal. Claro que, num certo sentido, ele trabalha. Faz discursos, faz viagens, faz promessas, faz reuniões, usa bonés de qualquer extração, faz uma porção de coisas. Mas não é o tipo do trabalho que agora se esperaria dele, as necessidades são outras. Com certeza, em seus tempos sindicalistas, trabalhou muito em reuniões, concentrações e ações correlatas. Mas agora essa experiência não vem servindo, tanto assim que a percepção geral (claro que em grande medida por culpa da imprensa também) é de que o governo não faz nada e o presidente— digo isto com toda a lealdade — não trabalha. Deve até ficar exausto de tanta coisa que faz, mas trabalhar mesmo, não trabalha. E, agora que o dr. Dirceu anda com problemas, a coisa se vê com mais clareza.
E pronto, vou abandonar o assunto, insisto em preservar minha lealdade. E digo mais, não vou nem ficar dizendo que ele não trabalha. Serei leal, vou procurar não discordar de mais nada e aplaudir tudo o que ele faz — ou não faz, para não deixar de lado o principal. O Dia das Mães vem aí e vocês vão ver com que discurso supimpa ele nos vai brindar (“ser mãe é brincar nas onze na pelada da vida”) e colaboraremos para seu sucesso em tudo o que pudermos. Existe algum boné especial para Dia das Mães?
JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.
Pensadores como João Ubaldo ainda sustentam um pouco de minha fé, bastante abalada, na natureza humana, especialmente na classe política. Essa, recebe mais que minha descrença. recebe minha repulsa.
Associando com a solução irônica proposta por João para resolver os problemas de segurança do Rio, vejo a manchete da primeira página e leio sobre o enterro do líder do Hamas. Independente de minha opinião sobre o conflito entre Israel e Palestina,
não consigo entender como o mesmo povo que sofreu as barbáries nazistas, identifica-se com o agressor e passa também a cometer assassinatos ostensivos e justificados.
Homo lupus homini.
Bem, acho melhor dar a palavra ao João.
Eu sou leal
JOÃO UBALDO RIBEIRO
Estava demorando um pouco, mas acabou aparecendo neste governo também. Como se sabe, a imprensa é culpada de tudo o que acontece de ruim. Tem sempre sido assim e não vai mudar. Volta e meia alguém se lembra de que o jornalismo é uma profissão perigosa, mas pouca gente de fato se preocupa com isso, até porque o perigo só é visível para a maioria quando os jornalistas estão cumprindo missões como a cobertura de guerras. Mas o perigo é bem mais amplo e, nesta minha já não tão curta vida, tenho sabido de jornalistas assassinados, agredidos, presos e até obrigados a um tipo de gastronomia peculiar à øprofissão: comer o jornal em que se escreveu alguma coisa que causou o problema denunciado. Comer jornais pode até não ser tão usual hoje em dia, a não ser que o Fome Zero tenha feito mais progressos do que os divulgados, mas, quando comecei a carreira, na Bahia, era corriqueiro, principalmente no interior. Acredito que, com a crescente desvalorização da vida, esse costume vem sendo substituído pelo assassinato mesmo. Sai mais prático e sem tantos problemas, eis que matar ou mandar matar alguém está muito fácil hoje em dia e, segundo me contam, a concorrência é tal que o serviço pode sair por algumas poucas centenas de reais, talvez pagos com cheques pré-datados ou vales-transporte.
Agora mesmo, devemos estar assistindo, no Rio de Janeiro, a uma dessas grotescas armações da imprensa. Por falta de tempo, assisto a pouca televisão, mas, de vez em quando, passo pelo aparelho ligado, dou uma espiadinha e levo algum tempo sem saber se estão mostrando o Iraque, o Afeganistão, o Oriente Médio ou o Rio mesmo. Às vezes, é complicado distinguir, pois não é que a imprensa resolveu inventar que está havendo combates de rua no Rio e que morre mais gente de tiro aqui no Brasil do que em muitos países oficialmente em guerra? É de pasmar. Claro que ninguém tem medo de sair à rua no Rio e que os moradores da Rocinha, por exemplo, estão inventando coisas, querendo aparecer. Mais um dos males da imprensa, dar espaço a quem quer simplesmente seus quinze minutos de fama.
Não sei aonde é que tudo isso vai chegar, mas já se comenta amplamente a idéia de construir muros no Rio de Janeiro, para segregar áreas perigosas. Vejam vocês que absurdo, nós aqui na mesma situação de Berlim no tempo da Guerra Fria ou de Gaza, nos tempos de hoje. Com certeza foram as ondas irracionais inventadas pela imprensa que fizeram praticamente todos os edifícios do Rio se cercarem de grades, transformando moradores e trabalhadores em prisioneiros. Agora vem esse negócio de muros. Ninguém duvide de que eles serão erguidos e a providência seguinte vai ser a instituição de postos de fiscalização, onde os transeuntes terão de mostrar passaportes para poder entrar ou sair de áreas muradas, além de outras medidas, certamente a serem mais tarde sugeridas, como a identificação e fichamento da cada cidadão morador de área murada. Aliás, já que é a imprensa mesmo que tem e acaba por fazer implantar essas idéias, sugiro logo que, doravante, só se possa circular com crachás contendo dados básicos sobre os portadores. Ou melhor, crachás não, porque as falsificações virão logo. Tatuagens, tatuagens devem ser a solução. São indeléveis e a Casa da Moeda poderia criar modelos de difícil alteração. A idéia não é nova, até porque usada pelos nazistas em campos de concentração, mas tem seus méritos e a exponho aqui como modesta achega. O lugar para as tatuagens é que podia mudar, porque os nazistas as faziam nos braços das vítimas e aqui podemos inovar, aplicando-as logo nas testas. Com um pouco de marketing e, naturalmente, a famosa vontade política, isso podia até virar moda em outras partes do mundo.
Falo neste assunto porque me tocou fundo a exortação de nossos líderes, notadamente o presidente da República (se não foi ele quem falou, trata-se de mais uma mentira da imprensa; a imprensa mente que não se sente, como falava minha avó), quanto à lealdade da imprensa. Pela parte que me toca, fiquei meio chateado, porque nunca me imaginei desleal. É difícil julgar nosso próprio comportamento, mas creio que tenho sido leal. Posso citar logo um exemplo que considero irretocável. Como muita gente, jornalistas ou não, há bastante tempo acho que o presidente, por falta de prática, não trabalha. Por favor, não me entendam mal. Claro que, num certo sentido, ele trabalha. Faz discursos, faz viagens, faz promessas, faz reuniões, usa bonés de qualquer extração, faz uma porção de coisas. Mas não é o tipo do trabalho que agora se esperaria dele, as necessidades são outras. Com certeza, em seus tempos sindicalistas, trabalhou muito em reuniões, concentrações e ações correlatas. Mas agora essa experiência não vem servindo, tanto assim que a percepção geral (claro que em grande medida por culpa da imprensa também) é de que o governo não faz nada e o presidente— digo isto com toda a lealdade — não trabalha. Deve até ficar exausto de tanta coisa que faz, mas trabalhar mesmo, não trabalha. E, agora que o dr. Dirceu anda com problemas, a coisa se vê com mais clareza.
E pronto, vou abandonar o assunto, insisto em preservar minha lealdade. E digo mais, não vou nem ficar dizendo que ele não trabalha. Serei leal, vou procurar não discordar de mais nada e aplaudir tudo o que ele faz — ou não faz, para não deixar de lado o principal. O Dia das Mães vem aí e vocês vão ver com que discurso supimpa ele nos vai brindar (“ser mãe é brincar nas onze na pelada da vida”) e colaboraremos para seu sucesso em tudo o que pudermos. Existe algum boné especial para Dia das Mães?
JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.
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