Clube das Almas Inquietas

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terça-feira, dezembro 21, 2004

O Natal de Drummond

Organiza o Natal
Carlos Drummond de Andrade

Alguém observou que cada vez mais o ano
se compõe de 10 meses;
imperfeitamente embora, o resto é Natal.
É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta:
10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito.
E não parece absurdo imaginar que, pelo
desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem,
o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era
civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas.
Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades
ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a
outra, de continente a continente, de cortina de ferro
à cortina de nylon - sem cortinas.
Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos,
marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de
fraternidade.
Os objetos se impregnarão de espírito natalino,
e veremos o desenho animado, reino da crueldade,
transposto para o reino do amor: a máquina de lavar
roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta
e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o
vestido de baile.
E o supra-realismo, justificado espiritualmente,
será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão
repartidos por si mesmos entre nossos irmãos,
isto é, com todos os viventes e elementos da terra,
água, ar e alma.
Não haverá mais cartas de cobrança, de
descompostura nem de suicídio.
O correio só transportará correspondência gentil,
de preferência postais de Chagall, em que noivos e
burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores;
toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço
do entendimento afetuoso.
A crítica de arte se dissolverá jovialmente,
a menos que prefira tomar a forma de um sininho
cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão,
celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume
das moitas antes do amanhecer, despojando-se
do uso do som. Para que livros?
perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra
impressa com as tintas do sol e das galáxias,
aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual
Palestrina e Mozart a deixaram;
equívocos e divertimentos musicais serão
arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão
suavemente classes armadas e semi-armadas,
repartições arrecadadoras, polícia e fiscais
de toda espécie.
Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir
o sentido natural da vida, sob a jurisdição
desses incansáveis trabalhadores, que são os
lírios do campo.
Salário de cada um:
a alegria que tiver merecido.
Nem juntas de conciliação nem tribunais de
justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que
o guardavam, e que passarão a depósito de doces,
para visitas. Haverá dois jardins para cada
habitante, um exterior, outro interior,
comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada,
e o homem compreenderá a existência da
noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas
crianças, e elas farão o que bem entenderem das
restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.








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2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Lindissimo Poema, comoas tuaspalavras que andam ausentes. volta minha amiga e brinda-nos com as Tuaspalavras com mais frequência se possivel, este é o pedido e desejo que te deixo

beijos

paulo

12:02 PM  
Blogger Nina said...

Paulo querido,
Seu pedido, então, já foi atendido. Meu pedido mantermos a amizade e o carinho que aprendemos a desfrutar aqui.
Um beijo carinhoso!

2:49 PM  

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