Clube das Almas Inquietas

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quarta-feira, agosto 24, 2005

A memória da água



O convite para o passeio até a ilha foi aceito mais por preguiça de recusar do que por vontade. Pela mulher, não sairia de barco. Ficaria em casa, tomaria chá com vultos acinzentados, cercada de lembranças pálidas e memórias requentadas. Ela não entendia porque as pessoas tinham medo de fantasmas, fantasmas não matam nem são cruéis, apenas sofrem, assombradamente ineptos em comunicar suas dores. Era gentil com eles, quem sabe não era fantasma também?
Quando chega ao cais,a mulher precisa conter-se para não correr de volta ao quarto, submergir nos lençóis, dissolver-se na penumbra. A luz a ofusca, incandescente.Tropeça, quase cai, amparando-se num marinheiro que a ajuda no embarque. Não é vertigem que sente. É luta contra o impulso assustador de lançar-se ao mar, arrancar-se da pele inútil, urgência de ir não sabe onde, mas pressente, a libertará.
O braço do marinheiro é sua âncora. Agarrada à carne do homem, hesita entre rastejar rumo à proa ou fugir de volta à terra. O que mais a assusta não é a queda, mas o prazer que intui nela.
Os fantasmas, numerosos que são, decidiram vir também. São eles que a empurram, exigem espaço, cobram-lhe companhia. A proa parece-lhe mais perto, talvez suas forças a levem até lá, os costados da lancha seu arame. Senta-se no banco frontal,tremendo de exaustão.


Leva algum tempo até que um suspiro longo anteceda o relaxamento dos músculos, perdendo a rigidez de estátua. O mar espelhado no céu sem nuvens funde-se ao verde da vegetação margeante, salpicada dos roxos, vermelhos e amarelos das encostas, o que dá à cena uma beleza impressionista.
Suspira. Mesmo os recantos mais sombrios, renitentes dentro de si, mesmo eles, numerosos como medos antigos, refúgio das aflições sem nome, também eles sucumbem à luminosidade imperiosa. Fora bom vir, afinal.


Vista de longe, imóvel na proa da lancha em movimento, olhos cerrados, cabelos embandeirados pelo vento, a mulher parece uma das antigas figuras esculpidas em barcos, amante saciada de vento, água e sal. O oceano é cosmos infindo, esparramado em galáxias, ventre de Supernovas.

Uma outra galáxia se forma. Os olhos, meio cerrados, têm a impressão de ver um relâmpago prateado desprendendo-se da madeira inexistente na proa.

Estremece.
Olha em volta, desorientada. O branco da fibra do costado, o ruído do motor potente que abafa o murmúrio de conversa atrás dela, o choque surdo do casco da embarcação na água denuncia a incongruência da visão. Poderia jurar, não poderia? Sentira o calor da madeira escura, tão distinta da assepsia leitosa da fibra de vidro. Ouvira o rangido da madeira ajustando-se ao leito de água, o murmúrio terno da água acolhendo a investida e o canto, sim, o canto sem som e sem palavras, gemido ou convite, não sabe – som silencioso que a invade, dá fim à letargia, a faz pulsar, abrir-se, buscar. Vem-lhe à mente a imagem de Ulisses, amarrado ao mastro para não ceder à tentação do canto das sereias. E ela? Quem era?

A mulher passa a mão pela fronte, afastando os cabelos longos que não tem.

Sobressalta-se mais uma vez, contém o gesto incongruente e a vontade de se atirar na água. Não era Ulisses, a lancha não tinha mastros nem ela cabelos compridos e sereias não existem. Deve ser o calor.

A lancha atraca em uma das centenas de ilhas da região. Selvagem, pequenina, apenas uma cabana de pescador denuncia a presença humana no lugar. A praia de areia clara e a sombra das árvores junto à margem convidam para o mergulho e o banho, o cristalino das águas revelando dezenas de peixinhos, fugidios e velozes, assustados pelas presenças anômalas. Tudo é relativo, pensa. O grupo de amigos lhe parece tão anômalo quanto para os peixes.
Afasta-se, caminhando até a ponta da praia, pouca coisa, uns cem metros, é tão pequena a ilha. Descobre, entre as pedras que marcam o final da areia um recanto escondido, rochas a formar um remanso natural. Como um molusco que se prende à pedra, escolhe uma reentrância, busca a água, meio mergulhada, meio sentada, aceitando, afinal, o afago líquido da marola macia. Ai.
Os peixes, apaziguados pela quietude da figura humana, absolvem sua intrusão, aproximam-se. Alguns são como pequenas zebras, rajados em listas negras. Outros,azuis e verdes, parecem espelhos refletindo a cor da água. Um outro, bem maior, todo em prata, exibe uma imensa pinta preta abaixo do olho.
A mulher sorri para ele, acusando-o de coquete, lembrada dos sinais de beleza usados na corte francesa. Cortesão ou cortesã, quem sabe distinguir o sexo dos peixes, de alva peruca e rosto caiado, negra pinta a atrair olhares, pura sedução? Uma estrela do mar, rápida, desliza pelo fundo de areia e surpreende a mulher ao passar sob suas pernas, despertando-lhe cócegas e desejo.
Ela ri, o riso deslizando pelo rosto, corpo e ventre. Inclina-se para frente, abraça a água, aceita o afago. O peixe cortesão aproxima-se, definitivamente masculino, ela decide, pois pisca os olhos redondos num convite expresso.

O canto sem som e sem palavras recomeça. Desta vez, desta vez não há susto, a água e o canto despertam-lhe a memória, lembrança ancestral que nunca ousara redimir.

A mulher ondula sobre areia macia do fundo da piscina, desliza sobre as pedras, o mar espelhado nos olhos, adentrando-lhe a alma.

Um relâmpago prateado de escamas atinge o oceano.

A maré sobe e novos peixes buscam o remanso entre as pedras. A perturbar-lhes o reino apenas o tecido escuro de um traje de banho boiando na água

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3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

...e nós ondulamos sobre os textos das almas inquietas...
beijão, Nina. (até que enfim...ATUALIZAÇÃO!!!!...rs)

12:13 AM  
Anonymous Anônimo said...

Lindo texto! y más linda la foto ;)

12:43 PM  
Blogger Leila Silva said...

Nina,

Lindo mesmo!Parabéns.
Beijos
Leila

8:09 AM  

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