Clube das Almas Inquietas

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sábado, abril 16, 2005

Lisboa mais uma vez revisitada

Ao abrir a janela, suspirou. A névoa matutina dissipava-se, morosa, revelando um céu de azul límpido e suave. A avenida larga,muito extensa, ladeada por elegantes prédios em pedras muito claras,convidava o observador a desvendar os segredos da cidade.
Lisboa é linda, pensou, feliz por tê-la escolhido como primeiro pouso em seu primeiro vôo solo. Nunca tinha se aventurado a distanciar-se do ninho, protegida pela segurança do que conhecia desde sempre. A língua, é claro, tinha sido determinante na escolha. Sabia que o peso da incomunicabilidade seria demais, não quis expor-se a ousadias maiores do que poderia suportar. Diante da janela, observando a luz espalhar-se pelo quarto, quase aceitou em voz alta o convite implícito: Eis-me aqui, finalmente.
Percebia-se tendo uma sensação curiosa, como se seus genes fossem mais que cromossomos ou cadeias de aminoácidos, fossem sim, presenças vivas dentro dela. Numa cidade desconhecida, sentia-se em casa. Vestiu-se, desceu para o desjejum, obteve alguns mapas da cidade no balcão da recepção e foi para a rua.
A avenida, tão convidativa do alto, torna-se quase grande demais e quando o porteiro lhe pergunta: - A menina deseja tomar o autocarro? - custa a entender a expressão. A menina é ela, autocarro é ônibus, eléctrico é o bonde, mas é um táxi que escolhe, pedindo ao motorista que a leve a esmo, aos lugares que mais aprecia. Nada de city-tours ou visitas guiadas, que a leve, por favor, aos lugares que mais ama. O anfitrião não parece estranhar o pedido, estudando o mapa à sua frente, prometendo conduzi-la a pontos estupendos de sua cidade, tão bela, há de ver.
Passeia pela Torre de Belém, os Jerônimos, Alfama, a Baixa, o Rossio, nomes melodiosos, casarios de azulejos, ladeiras e mais ladeiras anunciando as sete colinas da cidade e mil anos de história. O dia é curto e as tardes não são longas no outono. Ao chegar ao Castelo de São Jorge, as pedras acinzentadas já se tingem num leve tom de rosa. Pouco tempo lhe resta, em menos de uma hora, encerra-se a visitação.
Castelos a fascinam, viveu de construí-los e, ao perceber-se em um, de fato, o fato é que lhe parece irreal. A quase total ausência de visitantes, pela hora tardia, facilita a impressão de sonho ou de outra realidade. Há tanto para ver, há tanto que foi visto, sente-se até um pouco tonta ao caminhar pelos jardins que circundam a fortaleza. Percorre os espaços, senta-se às ameias, contempla o Tejo, impertubado, à sua frente. Quase entrevê caravelas transmutando-se em navios, passageiros ao convés, despedindo-se da pátria e da família. Imagina o avô, quinze anos, rapazote aventureiro, indo sozinho trabalhar com o patrício atacadista, amigo da família; a outra avó, muito menina, levando consigo, da aldeia natal talvez, um saquinho de cerejas ou apenas a lembrança do gosto das castanhas assadas na brasa.
Sobe à torre, passeia pela plataforma das muralhas, a presença da avó cada vez mais forte. A vista do castelo é quase esquecida, ela é, sim, menina, sentada a seu lado, a admirar-lhe as mãos de dedos longos e finos, tão hábeis em bordar-lhe vestidos, cozinhar-lhe quitutes, pentear-lhe os cabelos, em aconchegar-lhe as cobertas.
Busca o casaco, arrepiada com o vento que vem do rio, abraçando-se com força, a presença da avó mais forte ainda, intensa, como há muito não sentia. Revive as noites que passou com ela, a mão gentil a acariciar-lhe o braço, as conversas após a janta, as cadeiras de ferro do jardim, confortada pela voz serena, que não ria de seus medos nem menosprezava suas zangas.
Há algo naquele lugar. Há algo que é mais que seus genes ou sua imaginação fantasiosa. Há algo que invoca Margarida e a traz junto a si, neste castelo.
O nome próprio elucida o enigma. Nome de flor, da avó que cheirava à flor. Não a margaridas, não sabe ou não lembra do cheiro das margaridas, mas a avó com nome de margarida e cheiro de jasmim. Cheiro do perfume da avó doce e forte. Cheiro das noites da infância, impregnadas com o odor que emanava das touceiras junto à varanda da sala, o mesmo cheiro que exala dos pés de jasmim espalhados pelos jardins naquele castelo em Lisboa.

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2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Oi, Nina. A Oficina tá estimulando a produção, hein? Falo de quantidade e, sobretudo, qualidade...(rs). Indiquei teu nome pra dar continuidade à uma corrente literária que recebi dia desses. Está lá no Kayuá, vale a pena conferir.
Bj,
marcelo

8:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

Gostei disso. Muito bom mesmo. bj,
Vitor

1:49 AM  

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