Clube das Almas Inquietas

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terça-feira, abril 12, 2005

O ABOMINÁVEL ABDIAS

- “Abominável!”
Era assim mesmo que o Abdias falava do amarelo. Abominável.Vou lhe dizer, Abdias era homem de cismas, de implicância forte. No que ele implicava, fechava o tempo e aí não tinha jeito. Pro homem voltar ao normal, era um custo.
Quisesse o amigo ver o Abdias ficar louco, era só começar a cantar:
- Encontrei o meu pedaço na Avenida/ De camisa amarela/ Cantando a Florisbela, oi, a Florisbela...
A resposta vinha à jato:
-“Bem fez ele, que quando curou a carraspana, queimou a maldita.”
Aqui no bar, o povo todo conhecia as manias do Abdias. Na sinuca, dava-se ao desfrute de ignorar a bola amarela, mesmo quando a bendita era a da vez. Suicidava, dava espirro, fazia “macê”, qualquer coisa prá nem tocar na coitada. E ai de quem palpitasse no assunto. Abdias fechava a cara, sem admitir discussão ou brincadeira, o mau humor estalando, numa constância de desgostar que vinha, os poucos amigos diziam, desde os tempos de menino. Aquilo não era gosto, era desgosto mesmo, capaz até de trazer bile à boca, só não trazia porque bile é amarela e em boca de Abdias, amarelo, nem pensar. A raiva do Abdias não era só na bola amarela da sinuca, não. Era raiva de tudo que fosse amarelo. Roupa, casa, comida, parede, fruto ou flor. Se amarelo fosse, meu amigo, Abdias mandava ver: Abominável!
Com cheiro também. Hi, com cheiro, só vendo. Do amarelo ele tinha raiva, do cheiro tinha horror. Bastasse o cheiro lhe chegar às narinas, o homem seco, durão, de pouca fala, que viu perder pai, mãe e a mulher, uma santa, que Deus a tenha, vomitava as tripas, a alma, o que tivesse dentro, ficava entregue, um trapo, coisa de louco. Eu perguntava, que é Abdias? Abdias mal falava, caia no engulho, anunciando o vômito: - Abo... Pronto, desastre espalhado. O povo encarnava, claro, não era à toda que só chamavam ele de Abominável Abdias, sabe como é, o povo provocava e falava: Vai uma manguinha, uma carambola, Abdias? Só pra ver o Abdias engulhar.
Passasse com ele na feira, num almoço, numa calçada, sentia o tal cheiro e mudava o rumo, ficava verde, a cara torta. Em casa de Toninho nem chegava perto. Olhe que aqui não é que nem junto de praia, uma brisinha pra amenizar o calor. Aqui é estufa, de derreter miolo, deixar moleza e dor de cabeça. A calçada de Toninho é coisa rara, sombra caída dos céus, cada mangueira de uns cinqüenta anos, desde os tempos de menino, ainda estão lá. A garotada ficava doida com a frutarada, oferecida de bandeja, diga um nome, espada, carlotinha, rosa, tinha todas. E o escorrega? Parecia descer do céu, escondido na rama da forquilha mais alta, ah, saudade... Os galhos eram casa de Tarzan, navio de pirata, forte apache, cada dia uma coisa. Abdias não tinha ainda essas frescuras, mas tinha outras. Nem parecia guri, não gostava de bicho, sujeira, escorrega nem pensar. Menino não perdoa, o amigo sabe, não é que um dia amarraram Abdias e o puseram escorrega abaixo? Lá foi ele de cambulhada se estatelar num monte de mangas meio podres que o pai do Toninho tinha juntado pra enterrar.
Caiu lá, no meio da maçaroca gosmenta, das moscas e dos vermes, o suco esmagado escorrendo da boca, dos olhos, ele engasgando e vomitando, o cheiro forte da fruta no ar, a gente rindo, ele quase apagando, o pai do Toninho chegando e gritando com a gente que coisa abominável, engraçado, foi a primeira vez que eu ouvi essa palavra: abominável. Levou tempo pra Abdias voltar a falar com a gente, mas em casa de Toninho, nunca mais. Abdias era boa alma, só era esquisito.
E agora, aqui na sinuca, vendo o amigo jogar e dizer não gostar de amarelo, lembrei do finado Abdias. Ia lhe ter simpatia e dizer:
- Abominável. Amarelo é abominável.

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