Clube das Almas Inquietas

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quinta-feira, janeiro 08, 2004

NOVAS VARIAÇÕES SOBRE UMA AULA DE DANÇA

Quero agradecer à Carolina e Sérgio por terem salvo este e outros textos do lixo e do esquecimento. Foi um surperpresente para mim, obrigada aos dois.
Ah, o texto é parte de um e-mail a Sérgio.


A capacidade de confiar nunca foi o meu forte. Agora é que me dei conta que o que digo agora tem tudo a ver com a aula de ontem. Devo ter contado que a cada aula eu danço com um parceiro diferente. Fiz questão disso. Deve ser para contrabalançar minha parceria única de muitos anos.

Meu cavalheiro era soberbo! Um “guerreiro massai”, com um sorriso, uma segurança e uma calma serenas que, pela firmeza, dissuadiram minha resistência inicial em ser conduzida.

Logo no início da música, um samba, ele fez uma variação no passo. Eu, controle remoto afinado na estereotipia do passo aprendido, avanço no passo seguinte. Ele me segura com firmeza e não dá passo nenhum. Fico desconcertada, nada digo, preocupada em acertar o maldito passo novo, não errar o ritmo e contar os volteios mentalmente.

Você há de convir que isso é too much para uma dançarina incipiente, embora esforçada. Eu odeio errar, odeio fazer coisas que não domino muito bem. Claro, meu repertório, necessariamente, fica limitado, mas para uma perfeccionista controladora isso é mero detalhe...

Mais uma vez a situação se repete. Começa a música, damos os passos iniciais e ele estanca como uma mula diante do precipício.
Eu o olho interrogativamente e ele me diz com uma calma olímpica:
“- O cavalheiro é quem conduz a dama. Você aceitou dançar comigo, não vou dar um passo se você não deixar que eu a guie. Aproveite, relaxe, quem tem que saber o passo sou eu. Se você consentir, eu a levo.”

Tudo isso foi dito de uma forma extraordinária. Não havia nada de arrogante ou machista naquilo. Apenas o fato de que era verdade. E de que minha permissão era importante para aquilo que estávamos fazendo fosse mais bonito e harmonioso.
Consenti.

A aula transcorreu como se durasse dois minutos. Dançamos o soltinho, base para o twist e todos os ritmos mais velozes, boleros, tudo. Meu parceiro dava umas paradinhas, mudava os passos, repetia alguns, inovava outros e eu atenta ao movimento dele, mas de uma forma diferente, atenta em acompanhá-lo, não em obedecer a algum esquema pré-determinado.
Dançamos sem parar e, a cada movimento inusitado, ele me olhava sorridente e eu respondia, sorrindo com cumplicidade a isso. Passou a ser divertido, não penoso ou esforçado.

Ao final ele me diz: “- Não preciso nem dizer, não é? Foi muito bem...”
Saí da aula com uma leveza e um bem-estar imensos, livre da carga e do peso daqueles dias tão carregados.
No caminho de volta, percebi que estava feliz. Olha que coisa mais doida. Eu sempre achei que permitir era me submeter, ser subjugada. E meu parceiro, de quem nem sei o nome, usa uma palavra que me pareceu abrir uma outra compreensão disso, muito além da dança:
Consentir. Sentir com. No nosso caso, sentir a música, o ritmo, a delícia que é ajustar o nosso passo ao passo do outro.

Sei que você vai dizer que é minha imaginação pra lá de fértil, que coloca tudo isso numa aula de dança de salão. Não me importa. Acho que tem sido uma das aulas mais importantes que já tive na vida. Aprender a consentir é uma tremenda lição.

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