Clube das Almas Inquietas

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terça-feira, fevereiro 10, 2004

EMÍLIA E O INCOGNOSCÍVEL

Volta e meia, cismo com uma palavra. Encanto-me, dessa vez, com incognoscível. Incognoscível tem cara quase dele mesmo. Algo que se mantém na sombra, obscuro, intrigante como o próprio som da palavra.
Há um livro de Monteiro Lobato chamado Emília No País Da Gramática.
Lá, as palavras tinham rosto, corpo e idade, temperamento. Guardei uma, em especial. Dona Cáspite, uma velhinha bem velhinha, que se apresentava com um ar de permanente surpresa estampado no rosto enrugado.
A imagem, adormecida num cantinho obscuro dentro de mim volta nítida e com ela, uma outra, a de uma certa boneca de pano, de olhos de retrós. Emília, a boneca espevitada, arteira e sem papas na língua, como eu queria ser.
Fiz minha avó materna fazer uma boneca de pano para mim, de uma meia de meu avô.
Eu a adorava e foi minha companheira e confidente por um bom tempo.
Nesse jogo entre palavras e imagens, eu achava que retrós fosse um botão especial, negro, como daquelas botinas do século passado. Avançava no devaneio e tinha certeza de que aqueles botões dos olhos de Emília haviam pertencido a uma bota de dona Benta, usada no seu casamento com o falecido avô, a mesma percebida numa foto sépia, imaginária, onde dona Benta apareceria como noiva, cabelos escuros e camafeu, ao lado de um homem, meio gordote para nossos padrões de hoje, com longos bigodes retorcidos e parafinados.
Ele de pé, ao seu lado, com a mão no ombro de sua noiva, ar solene contrastando com o olhar tímido e ansioso da jovem Benta.
Minha boneca de pano só me fez a falseta de não ser uma Galatéia tupiniquim. Nunca falou, nunca me levou ao reino das Águas Claras e nunca pude realmente encontrar ao vivo com os personagens que povoavam minha imaginação, deuses, semideuses, figuras míticas, heróis, princesas e monstros.
Até hoje me lembro do nome de algumas ninfas, aprendidas com Monteiro Lobato. Dríades, hamidríades...
Tentava identificar suas moradas nos pés de manga, sapoti, goiaba, romã, jabuticaba de meu quintal. Buscava atenta um movimento sutil, um farfalhar de folhas, que me indicasse a presença de uma pequena ninfa que fosse. Quase as via. Pressentia suas presenças, mas sempre elusivas, nunca se mostravam de todo. Mas elas estavam lá, com certeza. E um dia, eu as encontraria. Eu acreditava em ninfas e centauros e bonecas que falavam.

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