Clube das Almas Inquietas

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segunda-feira, fevereiro 16, 2004

O olhar de Shakespeare

"Meus olhos, só pela visão dos seus,
Pingam de amor. O encanto se dissolve;
E como a aurora surpreende a noite
Derretendo o negror, os seus sentidos
Renascem e começam a banir
A névoa de ignorância que ora encobre
A razão clara. "

(A Tempestade, Ato 5, Cena 1)


Em 1611, Shakespeare escreve sua última peça- A Tempestade, uma de minhas obras prediletas.
Próspero, duque de Milão, banido de seu reino por seu irmão e opositores, é colocado num barco, sem remos ou rumo, à deriva, para morrer ‘a mingua. Ele e sua pequena filha sobrevivem, no entanto, chegando a uma ilha isolada e totalmente inabitada.
Apenas espíritos povoam a ilha, seus únicos companheiros daí em diante. Encontra Ariel, o espírito que representa o que há de melhor na natureza humana e também Caliban, o espírito bruto e incapaz de aprender e experienciar, voraz, ligado apenas a seus próprios instintos vorazes e descontrolados. Próspero dedica-se, por muitos anos, a controlar e manter sob suas ordens estes espíritos, encapsulado num mundo desumanizado, exceção feita à sua filha, a pequena Miranda, que trata de educar com esmero.
Muitos anos depois, um naufrágio traz à ilha seus opositores e a vingança se torna possível.O destino intervém e Miranda encontra os náufragos. Sem contato prévio com outros seres humanos, maravilha-se com este “admirável mundo novo” que se descortina diante dela, apaixonando-se por um homem do grupo.
Dentre os náufragos também está Gonzalo, homem justo e bondoso, que dera ao pai e à filha, às escondidas, provisões, roupas, livros, enfim, objetos que lhes permitiram sobreviver na ilha.
Sensibilizado pelo olhar amoroso de Gonzalo para com seu próximo e o de Miranda para com seu eleito,Próspero abre mão de sua vingança,da amargura e do ressentimento,reconciliando-se com sua humanidade, abdicando da magia e de viver na ilha solitária. Liberta os espíritos e retorna ao convívio dos homens.

O primeiro encontro entre duas pessoas se dá pelo olhar. Um olhar que humaniza, legitima e reconhece, que nos constituí como humanos e nos inclui numa relação, algo mais amplo que o nada ou tudo indiferenciado. É o olhar amoroso que suaviza e derrete o negror que nos coisifica ou destrói. O olhar que bane o desconhecimento de minha existência e da existência do outro, permitindo incluir-me e incluir este admirável mundo novo no meu mundo.
Shakespeare é demais!

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