Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

quarta-feira, março 24, 2004

MEU RITO


Pensamentos são fugidios. Fugidio talvez não seja a palavra mais adequada. Pensamentos são líquidos, onde a palavra cria o texto continente que lhe dá forma.
A imagem não é nova, mas meu texto continente é só meu. Vai ter de mim em cada traço que o delineie, em cada gesto que amasse, amando e modulando linguagens, argila e sonho, no esforço de capturar esses líquidos e criar espelhos d’água a refletir imagens daqueles que neles se debruçarem.
Há momentos em que distraída, ocupada, aflita, preguiçosa, insegura, não me deixo mergulhar no líquido, para nele buscar o continente certo para contê-lo. No entanto, independente de continentes, o fluxo é constante, volumoso, é urgente dar alguma forma aos pensamentos.
Antes, eu achava que uma caneca comum, ou a concha de minhas mãos não serviria. Só poderia abrigá-los em belos vasos, xícaras finíssimas, rebuscadas. A valia, imaginava eu, estaria na bela forma, prisioneira de uma estética idealizada, que exigia de mim uma perfeição impossível. Deixava meus pensamentos escorrerem no ralo do esquecimento e, junto com eles, minha necessidade de comunicar ao outro meu sentir.
Não quero mais finos cristais ou translúcida porcelana. Ou pelo menos, não só eles. Se for feliz, haverá dias de festa onde cristais e pratas serão usados. Mas haverá muitos mais, de cotidiano, vidro comum e louça diária. E eles serão também bons, mesmo que sejam maus. Não importa o vasilhame, se o líquido puder ser oferecido e gerar algum prazer, em mim, ao ofertá-lo e ao outro em aceitá-lo.
Quero, talvez, ser uma xícara de chá ou café turco, tomada nos bons e nos maus dias, para confortar, celebrar ou simplesmente exercitar o paladar. Quero deixar ao fundo, folhas, borra ou leve marca na superfície, vestígios que podem ser interrogados por almas inquietas e curiosas. Ou não.
Não importa. Não importa, quando percebo que comecei a escrever pensando em sapatos e fui mergulhando no fluxo de pensamentos, me deixando levar, sem preocupações de me forçar a buscar alguma margem. Não me importa, se puder sentir o mutante volume das palavras e me ver tomada pelo gosto imenso em pincelar letras na tela branca, num prazer crescente em escrever.
Meu mergulho na escrita é meu batismo. É meu rito. Renasço a cada vez.



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