MEMÓRIA REVISITADA
Reminiscência dupla: De minha infância e de um outro momento.
Meu projeto de menina era ser escritora. Sonhava e viajava nos livros, minha forma de escapar a um dia-a-dia que, com palavras generosas, posso descrever como mortalmente chato, na Tijuca de trinta e tantos anos atrás.
Lá, se combinava sapato com bolsa, comia-se frango com macarrão no almoço de família aos domingos, estudava-se em colégio de freiras, usavam-se vestidos feitos pela avó ou pela costureira da família, em geral, uma senhora viúva que contornava a penúria com os dons da agulha.
Meninas de boa família jamais eram rebeldes, mas filhas de Maria, como a prima modelo.
Dentro das casas meninas de família tinham aulas de bordado e piano, atormentando a todos e a si mesmas com escalas monótonas, repetidas boa parte da tarde. O bordado da toalha, já amassada e marcada de mãos, era desmanchado, para ser refeito, com mais capricho. Fora delas, os meninos soltavam pipas, jogavam bola, brigavam, brincavam, se divertiam, com shorts, sem camisa, descalços.
Meninas de família tinham uma vida intragável e para tornar essa chatura mais palatável eu lia, compulsivamente. Tudo. De Julio Verne e Jack London, Dumas, Zola, Steinbeck, os russos, Stendhal, todos os clássicos. Mas lia furtivamente a coleção de Querida e Grande Hotel- as revistas de fotonovelas de vovó. Ela as guardava num armário, junto à sapateira, no quarto dos fundos. Assim, apesar dos fundamentos intelectuais, encantei-me, desde cedo com O Romance - o universo feminino do romantismo piegas.
As histórias eram traduzidas de revistas italianas. Não sei se modelos ou atores, tinham sua escala de grandeza estabelecida. Alguns mais famosos e freqüentes, protagonistas perpétuos das fotonovelas principais. Giancarlo, Marisa, Arturo, eram esses nomes que povoavam o final de minha infância. Lia todas, às escondidas, durante a sesta de meus avós, deixando um livro permitido qualquer à mão, para o caso de chegar algum adulto perto.
Todas as mocinhas eram, pobres ou ricas, incompreendidas pela família, estóicas em sua vida de renúncia aos pecados mais diversos, munidas apenas da fortaleza de um coração puro e indômito!!!!
O mocinho, em geral, vivia num ambiente social diverso embora também não houvesse, para eles, grandes variações caracterológicas: Eram sempre audazes, e desafiavam convenções, famílias, normas sociais. Cabia a eles a aproximação e o resgate da mocinha de uma existência nulificada e injusta.
Cabia à débil mocinha, apenas ser desejada e descoberta pelo garboso príncipe.
Dessa forma, a chatura e a passividade da vida feminina se repetiam, na ficção e na realidade. Na ficção sempre existia um príncipe que resgatava a mocinha e a transformava na princesa de sua vida. Na vida real, apenas o cotidiano.
A solução, se é que se pode chamar de solução, estava ali, diante de meus olhos: aprender a guardar secretamente dentro de si o turbilhão de emoções, no quarto dos fundos, sonhos e nomes estrangeiros. Aprender a cozinhar, bordar, pois para saber mandar é preciso saber fazer, ser graciosa, feminina, estar pronta para o príncipe quando ele chegar.
Quando ele chegava era quase príncipe, quase sapo, quase ogro. Era sempre quase qualquer coisa, nunca o príncipe da novela, mas, depois de tanta espera, ninguém fica tão exigente assim. Começo de espera, no entanto: Aí vinham a espera dos bebês, dos netos e dos romances nunca concretizados. Mulheres aprendiam a esperar desde cedo.
Tudo isso pode parecer muito cafona e datado hoje em dia. No entanto, mesmo atualizando personagens, eu me pergunto se ainda não buscamos o bendito príncipe, de roupagem moderninha, mas príncipe de qualquer jeito, para o príncipe e a princesa escondidos no fundo de cada um.
Talvez todo mundo tenha um sonho de realeza, de poder ser príncipe sedutor ou princesa encantadora, merecedores um do outro, equalizados na perfeição. Estão lá, imortais, esperando uma invocação, ou na linguagem das fadas, à espera de serem acordados de um sono profundo ou retirados de torres altas ou masmorras escuras do nosso esquecimento.
Meu projeto de menina era ser escritora. Sonhava e viajava nos livros, minha forma de escapar a um dia-a-dia que, com palavras generosas, posso descrever como mortalmente chato, na Tijuca de trinta e tantos anos atrás.
Lá, se combinava sapato com bolsa, comia-se frango com macarrão no almoço de família aos domingos, estudava-se em colégio de freiras, usavam-se vestidos feitos pela avó ou pela costureira da família, em geral, uma senhora viúva que contornava a penúria com os dons da agulha.
Meninas de boa família jamais eram rebeldes, mas filhas de Maria, como a prima modelo.
Dentro das casas meninas de família tinham aulas de bordado e piano, atormentando a todos e a si mesmas com escalas monótonas, repetidas boa parte da tarde. O bordado da toalha, já amassada e marcada de mãos, era desmanchado, para ser refeito, com mais capricho. Fora delas, os meninos soltavam pipas, jogavam bola, brigavam, brincavam, se divertiam, com shorts, sem camisa, descalços.
Meninas de família tinham uma vida intragável e para tornar essa chatura mais palatável eu lia, compulsivamente. Tudo. De Julio Verne e Jack London, Dumas, Zola, Steinbeck, os russos, Stendhal, todos os clássicos. Mas lia furtivamente a coleção de Querida e Grande Hotel- as revistas de fotonovelas de vovó. Ela as guardava num armário, junto à sapateira, no quarto dos fundos. Assim, apesar dos fundamentos intelectuais, encantei-me, desde cedo com O Romance - o universo feminino do romantismo piegas.
As histórias eram traduzidas de revistas italianas. Não sei se modelos ou atores, tinham sua escala de grandeza estabelecida. Alguns mais famosos e freqüentes, protagonistas perpétuos das fotonovelas principais. Giancarlo, Marisa, Arturo, eram esses nomes que povoavam o final de minha infância. Lia todas, às escondidas, durante a sesta de meus avós, deixando um livro permitido qualquer à mão, para o caso de chegar algum adulto perto.
Todas as mocinhas eram, pobres ou ricas, incompreendidas pela família, estóicas em sua vida de renúncia aos pecados mais diversos, munidas apenas da fortaleza de um coração puro e indômito!!!!
O mocinho, em geral, vivia num ambiente social diverso embora também não houvesse, para eles, grandes variações caracterológicas: Eram sempre audazes, e desafiavam convenções, famílias, normas sociais. Cabia a eles a aproximação e o resgate da mocinha de uma existência nulificada e injusta.
Cabia à débil mocinha, apenas ser desejada e descoberta pelo garboso príncipe.
Dessa forma, a chatura e a passividade da vida feminina se repetiam, na ficção e na realidade. Na ficção sempre existia um príncipe que resgatava a mocinha e a transformava na princesa de sua vida. Na vida real, apenas o cotidiano.
A solução, se é que se pode chamar de solução, estava ali, diante de meus olhos: aprender a guardar secretamente dentro de si o turbilhão de emoções, no quarto dos fundos, sonhos e nomes estrangeiros. Aprender a cozinhar, bordar, pois para saber mandar é preciso saber fazer, ser graciosa, feminina, estar pronta para o príncipe quando ele chegar.
Quando ele chegava era quase príncipe, quase sapo, quase ogro. Era sempre quase qualquer coisa, nunca o príncipe da novela, mas, depois de tanta espera, ninguém fica tão exigente assim. Começo de espera, no entanto: Aí vinham a espera dos bebês, dos netos e dos romances nunca concretizados. Mulheres aprendiam a esperar desde cedo.
Tudo isso pode parecer muito cafona e datado hoje em dia. No entanto, mesmo atualizando personagens, eu me pergunto se ainda não buscamos o bendito príncipe, de roupagem moderninha, mas príncipe de qualquer jeito, para o príncipe e a princesa escondidos no fundo de cada um.
Talvez todo mundo tenha um sonho de realeza, de poder ser príncipe sedutor ou princesa encantadora, merecedores um do outro, equalizados na perfeição. Estão lá, imortais, esperando uma invocação, ou na linguagem das fadas, à espera de serem acordados de um sono profundo ou retirados de torres altas ou masmorras escuras do nosso esquecimento.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home