O sustentável peso de ser
O aeroporto estava cheio.
Viajantes, acompanhantes e funcionários formigavam sob a abóbada comercializada do saguão central. Estava preparada para longas horas de suplício aguardando aviões que não aterrissavam, embarques que não se realizavam, brigas e tensão, tudo que efetivamente acontecera na vinda à São Paulo.
Para minha surpresa, na volta tudo transcorreu dentro da maior normalidade. É assustador um país onde inusitada é a normalidade, o cumprimento de tarefas e o exercício do direito de ter um serviço prestado corretamente, assunto para nova postagem.
Feitos os procedimentos de embarque, dirigi-me ao terminal correspondente ao meu vôo. Era o último, ao fundo do imenso salão. Pouca gente aguardando, cedo ainda, pude escolher uma cadeira bem central, avistando quase que todo o espaço da sala de embarque, numa posição privilegiada, um convite a dialogar com meus pensamentos e entreter minha imaginação.
Sempre gostei de gente, de ouvir histórias sobre pessoas. Quando não sei e tenho a chance de olhar atenta,invento eu as estórias, delineio personagens, articulo enredos.
Diverti-me imaginando destinos e intenções. Olhava um, olhava outro, imaginava suas vidas, para onde iriam, quem iriam encontrar, a razão de sua viagem, coisas assim.
Dentre todos, um rapaz se destacou. O interessante é que nada havia para destacá-lo, nada havia nele de exótico ou exuberante. Ao contrário, as roupas eram caras, era evidente o sobrenome das grifes em cada peça, o conjunto elegantemente estudado para ser casualmente rico, refinadamente low profile.
De excessiva, apenas a magreza dos ascetas antigos,dos anoréxicos, daqueles a quem o corpo não é mais morada, mas fardo. As roupas pareciam estar sustentadas num cabide de arame, quase desprovidas de sustentação, assim como o boné que , voltado para trás, parecia grande demais, frouxo no crânio. O rosto nada tinha de especial, nem feio nem bonito. Era jovem, bem jovem.
Descrevendo-o, dou-me conta do que o destacava do grupo em volta. A juventude, evidente nas roupas e no corpo, era estranhamente ausente no conjunto geral. Pensei nos protótipos de magreza. Um Quixote?
Não, não era um Quixote. Faltavam-lhe os olhos febris e a intensidade corporal que atribuo ao Cavaleiro da Triste Figura. O rapaz não era um cavaleiro da triste figura - nem no traje nem na alma - mais irreal que o Quixote de minha imaginação.
Não conseguia criar-lhe uma vida, dar-lhe uma história, sentimentos ou destino. Parecia-me um corpo cuja leveza do material não lhe conferia substância de uma existência encarnada. Não consegui imaginá-lo ansiando por chegar a algum lugar ou aflito por rever alguém, nem sofrendo e nem vibrando. O que se destacava não era sua presença, mas sua ausência de si mesmo, ao meu olhar.
Baixei os olhos e voltei-os para dentro de mim, para minhas turbulências. Senti meu corpo e de tudo aquilo que vive dentro dele. Meu sentimento foi de alívio. Apesar das imperfeições,incertezas e dúvidas, habito-me. Minha alma tem morada.
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