O CORAÇÃO DENUNCIADOR
Esta história não é nova, mas é uma de minhas prediletas !!!!
O sábado parecia auspicioso. Fim de semana cheio de convites, quis aproveitar o máximo que podia. Um lauto almoço na casa de uma amiga que fazia aniversário, onde ri, conversei, reencontrei pessoas que não via há vinte anos. À noite, uma festa em um clube italiano, convidada por outra amiga e o marido que moram em Sampa. A amiga sugere coisas interessantes – boa comida, bons vinhos, animação, um papo saudoso. Topo sem hesitar.
Quando lá chegamos, tive a nítida impressão de que era a pré-estréia de “Jurassic Park”. Definitivamente, o somatório das idades dos presentes chegava ao período antediluviano!
A festa era animada (!!!) por um suposto galã de olhos melancólicos e voz edulcorada, bradando “Dio, come ti amo”, ... Nos intervalos, um acordeão.
Compreendo que, por bom senso, não queriam tocar nada por demais excitante. Tenho certeza de que o preço do ingresso não incluía uma estadia no hospital cardiológico mais próximo nem um reumatologista de plantão, para restaurar acidentes de percurso. Lembrei-me que era uma ocasião festiva e o tal clube não devia ser equipado, como o Queen Elizabeth, com um necrotério próprio (É verdade! Li não sei onde e fiquei impressionadíssima! Parece que a idade média dos ricaços navegadores exige tais cuidados).
Esta parte da noite foi salva pelo encontro com os amigos e uma sessão de tarantella, para a qual fui convidada por um dos provectos cavalheiros presentes, tendo na ocasião a oportunidade de repensar a capacitação aeróbica da terceira idade. No final eu estava mais arquejante que o dito cujo. Juro que paro de fumar!
Minha amiga estava com uma prima e uma amiga desta que, indignadas pelo quantum de emoção oferecido, me convidaram para esticar a noite. Como estou em fase de topar ir a bingo em quermesse de subúrbio, aceitei.
Decidido o lugar, lá fomos nós. Quando chegamos, o local estava cheio, a música animada. Era uma festa para “singles”. Pensei com meus botões: “- Vou poder por a aula de dança em prática. Foi uma boa escolha...”
Ficamos no bar até que uma mesa vagasse e quase que de imediato um fulano vem tirar a prima para dançar. Argentino, com um bigodão vasto, vestido com um blazer que encobria algo brilhando na camisa.
Típico “Gardelón”, metido a engraçado, insinuando-se pra cima da moça, dizendo com aquele sotaque portenho: “- Veja o que você faz com meu coração!” Ele afasta a pala do blazer e mostra um broche. De plástico, em formato de coração, com uma pequena lâmpada vermelha que ficava piscando intermitentemente!
Quase engasguei com a bebida! Olhava, fascinada, para o conjunto de conversa mole, jeito clown e o tal coração piscando que nem luzinha de ambulância! Meus botões, atônitos como eu, assistem a prima, toda lampeira,flertar luminosamente com o bigode piscador.
A noite segue seu curso e convites também não me faltaram. Mas, tirando um certo cavalheiro bem razoável, o padrão era apenas um pouco melhor que esse relatado acima. Ser chamada de “boneca” ou então ouvir: “- Fala!” - Ordem peremptória para que eu alardeasse minhas boas qualidades – faziam com que eu tivesse um impulso irresistível de juntar as mãos ao peito, arfar e mostrar que era bem treinada em docilidade!
A gota d’água foi quando, mais ou menos uns quarenta minutos depois, Gardelón e a prima se sentaram e ele, para exibir sua vasta cultura, saca do bolso um pequeno chip, exclamando que aquele pequenino pedaço de metal tinha mais inteligência que a loura cabecinha de sua recente conquista.
Diante de meu olhar abismado pela grosseria abissal, estende o chip para mim, dizendo: “- Veja! Isso aqui tem não sei quanto de memória!” E o raio do chip cai no meu copo, mergulhando entre rodelas de limão e cubos de gelo.
Olho para tudo, imóvel, incapaz de dizer alguma coisa. A amiga da prima pega meu copo, bebe o conteúdo, pega o chip entre os dentes, depois com a mão e entrega para o argentino. Este, satisfeito, dá um tapinha na mão dela e diz:
“- Gosto de mulheres assim!”
Não resisto. Levanto-me, pego minha bolsa, meu casaco, despeço-me de todos e vou embora. Ainda escuto o comentário atrás de mim:
“- Estranho, ela estava sendo bem procurada...” A amiga responde:
“- É que ela se separou há pouco, está estranhando...
Pego um taxi, aliviada de ir para casa, e fico a indagar-me sobre a vastidão do campo das escolhas pessoais e dos insondáveis mistérios que se ocultam no coração humano.
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