Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

sábado, fevereiro 21, 2004

SOBRE A VIDA DAS BORBOLETAS

Ainda de pijama, abre a porta da cozinha. O jornal está sobre o carpete da entrada, pesado de ofertas, procuras, drama e cotidiano. Recolhe-o, pousando-o ao lado do jogo americano. A mesa, posta de véspera, parece vazia. Abre o armário, pega a leiteira - a água no fogo, suporte, filtro - três colheres de pó, gestos maquinais. Espera a água ferver.
Sentada à mesa, os pensamentos se esparramam na alvura dos azulejos. Os armários tão caros, a geladeira, tudo é branco. Até relógio da parede. Para marcar o tempo de vidas em branco, pensa com ironia. Parecia tão bonito, agora me enjoa, tudo igual. Três colheres e esse tanto de água? Puro desperdício. Vou tirar uma colher. A água, deixa pra lá, escaldo a garrafa térmica.
Folheia o jornal, desinteressada, a mente patinando no maldito branco, teimando em voltar para perto do poço de onde fora tão difícil sair.
Lembra do parque perto de casa. Vou caminhar, decide, levantando da mesa intocada.
-É um exercício aeróbico, qualquer médico indica, evita a osteoporose, é importante buscar opções saudáveis.
Falando sozinha e ainda parecendo o médico da empresa no check-up? Melhor tomar cuidado, deve estar ficando doida. Na véspera, percebeu o olhar de espanto da pessoa no carro ao lado, no sinal. Tinha esquecido que estava só - de fato. Estivera tão absorvida na discussão, que nem percebeu que, agora, nem o corpo estava mais lá. Brigava com um banco vazio.
Termina de se vestir. Verifica a roupa, o tênis, a bolsinha na cintura.Tem andando meio desligada, é difícil lembrar dos detalhes do dia a dia. Inventaria os pertences:
- A chave do carro, de casa, algum dinheiro, o celular. O celular não. Esse fica em casa.
No parque, a friagem da manhã antecipa o inverno. Uma neblina leve cobre as árvores e a chuva pesada da véspera deixa o lugar estranhamente vazio, quase como se fosse uma floresta de verdade, desabitada, não um parque, no coração da cidade. Mais tarde virão as famílias, as crianças, as bicicletas, os namorados. Mas não agora. Não faria sentido. Melhor assim. Como se estivesse em outro mundo.
O caminho definido, com marcos amarelos, indica a direção e o tamanho do percurso. Não precisa escolher que rota seguir. É circular, vai acabar dando no mesmo lugar. Melhor assim, também.
Seguir em frente. Só isso. Mal ouve o canto dos pássaros, o tum-tum dos passos ecoando nos ouvidos, marcando um ritmo que se encontra por si mesmo, com força, buscando afastar o frio no rosto e no corpo. A névoa deixa tudo meio irreal. Respirar fundo e expirar. Não precisar olhar para fora, abrir mão da métrica nos passos. Se iguais a outros ou não, que importa?
Uma volta e mais uma. A manhã se estende e o sol se aventura para fora das nuvens. A névoa se dissipa, repousando, úmida, nas árvores e na grama. O ar, não mais ferindo as narinas, parece um cobertor finíssimo, que a aquece, afastando a tensão, agora sim percebida. Tira o agasalho, sem parar de caminhar, reconhecendo o cheiro da grama e da terra secando ao sol, cheiro bom, que lhe dá conforto.
Lembra da infância, da época em que se morava em casas e tinha-se quintal, não playground de cimento e brinquedos de plástico. Lembra do cheiro de pão quente, fresco. As idas à padaria, com o pai, aos sábados à tarde. O perfume dos pães, das broas e dos bolos, recém saídos do forno, o gosto dos frios. A expectativa de que sábado chegasse, do seu sábado, quando caberia a ela, dentre os filhos, a vez de escolher o lanche da família. Esperar pelo sábado, pela festa de quinze anos da melhor amiga. Os planos, as providências, a expectativa. Aliás, pelo que lembra, a festa foi até boa, mas o melhor da festa foi mesmo esperar por ela.
Foi nesse dia que sentiu, pela primeira vez, ter borboletas na barriga. É como consegue definir. É isso que sente quando espera por alguma coisa boa acontecer - que tem borboletas voando dentro dela.
Tem, não. Tinha.
- Anseio, é isso.
Nem percebe que fala em voz alta. A palavra veio sem querer, pronunciada como um suspiro. Junto com ela, o aperto no peito:
- Naquela época, o que eu não conhecia era a palavra.
Leva um susto quando um gato, rajado em muitos tons de laranja, herdeiro multicor de não sei quantas raças, atravessa rapidamente o caminho. Num pulo preciso, sobe em uma pedra, junto a uma touceira florida. Parece determinado, buscando algo que ela não consegue ver.
Não resiste. Diminui os passos e para, um pouco afastada da pedra, testemunha curiosa do que vai acontecer.
O gato rasteja pela superfície escura, o olhar fixo num ponto adiante, o corpo tenso, em movimentos lentos.
Escondida na vegetação, amarela como as flores da touceira, está uma borboleta. Pousada na flor, agita as asas em movimentos quase imperceptíveis. Os movimentos do felino são assim também, milimétricos, como se tudo fosse um filme visto quadro a quadro. Mais perto, mais perto.
Um raio alaranjado atinge a planta e um amarelo se desprende dos outros, solto, no ar. O gato está imóvel, esculpido, por um momento, na pedra.
É isso. Acabou. Ela procura despojos da batalha, talvez restos, um corpo que possa prantear.
Então ela viu. Percebe que o amarelo no ar não era uma flor despedaçada. A borboleta, ainda viva, flutua, mais alto, impossível de ser tocada.
O gato pula da pedra e se afasta, como se nada tivesse acontecido. Olhando-o, surpreende-se com a expressão do felino, quase humana, de desapontamento e desdém.
Ela chora e ri. Esquecida do lugar, dos passantes, do medo de ser chamada de louca, ela ri, ri como não ria há muito tempo. Parada, ali, descobre que ainda há vida nas borboletas.

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