Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

sexta-feira, março 05, 2004

SER ROSA



Ela voltou a sangrar depois que ele a beijou. Acordou sentindo na boca as marcas do encontro, a pele arranhada do queixo, o freio da língua dolorido. Sentou no vaso, meio sonada, meio sonhada, olhos fechados, empurrando mecanicamente os panos de si, respondendo à urgência das águas da noite.
Tateou em busca do papel para enxugar-se e foi aí a surpresa de sentir-se úmida. Abriu os olhos e encontrou. Estava lá, a nódoa avermelhada na calcinha. Riu do achado e olhou de novo para a cor estampada no pano. Vermelha, como uma rosa, a mancha de sangue na calcinha.
A água no chuveiro termina o despertar. O dia vai ser cheio. Pela primeira vez em tempos, se demora no banho. É bom. Sentir a água na pele, afagar o corpo com a bucha, passar a mão por si, com carinho, sem desleixo nem pressa. Recompensa com cuidados, ai que alívio, o estar viva e ser fêmea. Voltou a sangrar. Depois de dois meses, voltou a sangrar ela pensa, os pensamentos escorrendo com a água:
- Bem vinda! Se abolete, fique por uns dias, faça de conta que a casa é sua, de novo! Faço cama de branco algodão, aplaco as cólicas com remédio importado, não reclamo do inchaço nem do desconforto, eu prometo. Trato-lhe melhor, sem queixas, vai ver, fica, que ainda te quero junto a mim.
Sangrava tão pouco estes dias. Estes dias, uma ova. Já há tempos vinha sangrando pouco. Sangrava pouco, chorava pouco, suava pouco. Mas também, o que não estava pouco em sua vida? Nunca fora de muitos humores, verdade seja dita, mas nestes dias, o pouco era muito pouco. Tão pouco que se pensara seca.
Alma seca, sim. Poetas dizem isso, gente dramática também. Assim como existe olho seco. Lembra, outra surpresa, do médico lhe dizendo que não tinha conjuntivite, mas ressecamento da lágrima. Seu corpo bem que lhe avisara do pouco, mas pouco lhe dera atenção. Precisara secar para notar.
- Ora veja, quem diria, corpo vivo seca, seca sim, saiba a senhora, fica seco, fica duro, fica um cacto.
Imagem horrível a do cacto. Nem era nesses cactos bonitinhos que pensara, de vasinho de barro, o verde da planta realçado na brancura do leito de pedrinhas, não senhora, cacto de deserto mesmo, solitário, árido, estéril, ressequido.
-Não quero ser cacto.
São bonitos. São exóticos. Resistentes.
- Dane-se! Cacto não. Flor. Quero ser flor. Não cacto nem flor de cacto, mas flor. Posso até ser rosa, não gosto muito, rosa é boba, convencional. Mas se rosa for, que seja rosa rebelde, como a que cresce num jardim sem cuidado, ou rosa no cabelo da cigana. Ou então, ou então rosa, isso, rosa entre os dentes de um dançarino de flamengo, ah, essa rosa eu quero ser.
Não entende bem o que houve. Algo houve. No corpo, em si? Coincidência? Não amava o homem, isso não. Nem paixão era também. Amou sim, reconhecer seu corpo no encontro com o corpo dele. Amou sentir o calor que supunha extinto, a agitação violenta das vísceras a escorrer lava, encharcando-lhe as coxas, a doer-lhe o ventre. Amou sentir-se viva. Fez-lhe bem sentir-se flor, abrir-se flor, como uma rosa, de querer e vontade. Rosa de desejo, de rosa boca e rosa vulva. Rosa corada, rosa molhada, rosa como a rubra rosa da calcinha.
Era rosa.

|