Clube das Almas Inquietas

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terça-feira, maio 08, 2007

Cortes sem sangue


Dei-me a pensar nos cortes afetivos radicais que tenho realizado mais recentemente. Nada de óbvio, nada de espalhafatoso. O que foi cortado não é visível à olho nu, traduzido em distância e silêncio.
Em mim, ah, em mim não é tão fácil assim. Divido-me. Alterno momentos de medo e bravata, sustentando-me, acima de tudo, numa determinação teimosa de buscar um outro caminho que não sei se vai ser melhor, mas que, ao menos, é distinto daqueles que sempre trilhei e não me oferecem mais conforto ou alegria.
Como é duro, como é difícil, como perseguir a utopia do cortar sem perder um único centímetro do que se possuía antes. Talvez, o medo do amplo espaço que é criado dentro de nós depois dos cortes, talvez a dor da perda daquilo que, um dia, vivemos como pleno, constante e confiável. Não é, no entanto, daquilo que foi cortado que desejo falar, mas do corte, em si.
Digamos que há, no mínimo, duas possibilidades de perspectiva em relação a um corte: um corte que pode ser sinônimo de cisão, ruptura, amputação e um outro corte, associado à separação e também ruptura. Ou seja, pelo acontecimento, em si, não haveria muita distinção. Desejamos cortes sem sangue, sem sofrimento ou perda. No caso dos humanos, no entanto, o ideal do corte sem sangue só é possível se o corte ocorrer após uma morte por hemorragia, só é sem sangue se já houver sangrado tudo antes.
Neste justo momento, ó bendito poder de elaboração da escrita, percebo que talvez a grande confusão resida no fato de pensarmos nos grandes cortes como amputação ou ferida mortal. A diferença vai aparecer, então, não no ato de cortar, mas no destino que é dado a este corte. Uma imagem nítida acaba de aflorar em minha tela mental: Não é uma imagem de amputação, mas a do próprio momento do nascimento.
Desde quando nascimento é limpo, asséptico e perfumado?
Nascemos sujos de sangue e muco, inchados, impactados por uma mudança radical de tudo e que, no entanto, é condição sine qua non para uma existência pessoal.
O cordão umbilical é cortado e o sangue é limpo e estancado, sobrevivemos ao impacto do ar nos pulmões e choramos, experimentando, pela primeira vez, a aventura de existir por conta própria. Nosso corpo se agita e experimenta lugares e vivências para além do espaço protegido do útero. Espaço que foi um dia necessário, mas é escuro, apertado e simbiótico. Que destino dar aos cortes que damos ou recebemos da vida?
Como aprendemos a lidar com o que nos assemelha a uma ameaça e poder reconhecer, dentre o sangue, a dor e a sujeira do processo, uma diferenciação que pode oferecer uma nova vida?

Os cortes estão feitos e ainda não tenho as respostas para as perguntas que me fiz acima. Arrisco-me em um novo percurso. Como não é a morte ou não vida que busco, aceito o sangue que advir de minhas escolhas e aposto no “RE”: regenerar, reconstruir, renovar.
Alea jacta est, a sorte está lançada.







Imagem: Joan Miró - Birth of the World (1925) 75 x 60 cm Musee Picasso, Paris

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1 Comments:

Blogger Pedro Levy said...

Como descrever a sensação de ter feito uma viagem em minhas próprias lembranças dos cortes que sofri ou dos que executei através da leitura de palavras que não me pertencem e com as quais eu tanto me identifico?
Nina continua precisa,cirurgica e humanizadora.Grande Nina.
Muito Bom passear por aqui.
Beijos

12:31 AM  

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