Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

sábado, março 19, 2005

Sonhei que sonhava um sonho...


Não costumo lembrar muito de meus sonhos, mas há alguns deles que são tão vívidos que, mesmo ao despertar, impregnam meu acordar desta outra realidade. Eu os chamo de sonhos emblemáticos. De uma forma ou de outra, são marcos de um momento de vida e é como se o grupamento daquelas imagens fosse a condensação de uma experiência emocional intensa, desapercebida de outra forma.
Há muito tempo atrás tive um sonho destes e hoje sonhei que o sonhava outra vez.
Caminhava por uma rua de grande movimento aqui no Rio. A rua é conhecida e existe realmente, há pouco mais de um quilômetro de minha casa.
Está anoitecendo. As sombras se alongam e se ampliam rapidamente, pessoas correm apressadas ou aguardam, num bloco compacto sob uma marquise, a condução que as levará para casa naquele começo de noite de inverno.
Deve ser inverno, todos estão encapotados e tenho a impressão de uma garoa fina que expulsa, com mais pressa, a multidão para casa.
Eu também quero ir para minha casa, proteger-me da noite quase hostil. Venho de um encontro com um ex-analista, onde tratei de algo importante. Sinto frio.
Mais uns passos e estou no meio de uma grande obra na rua: Entre a calçada estreita e a rua movimentada, um tapume de compensado velho e manchado se esparrama a perder de vista. O chão, esburacado, oferece como passagem tábuas estreitas, instáveis e sobrepostas, num simulacro de ponte entre os lugares escavados. Adiante, o caminho se afunila mais ainda, formando um corredor escuro que margeia um paredão de pedra estendendo-se por algumas centenas de metros. O cenário, embora real e conhecido, é tonalizado por um clima fantasmagórico, tornado ainda mais lúgubre por luzes esparsas, colocadas nos mourões do tapume, trêmulas sob a cúpula rústica e opressora de baldes vermelhos em reverso.
Caminhava, ansiosa por me afastar do lugar, quando um presságio de infinito perigo, que só a vulnerabilidade e a ignorância podem oferecer, faz-me apressar os passos e buscar o conforto dos espaços abertos. Alguém me segue.
O frio pela espinha é acompanhado do eriçamento dos pelos da nuca e dos braços, como um felino em alerta. Apresso os passos, aos tropeços, meio que corro, entrando num túnel de medo e adrenalina, gelada pelo suor, surda com o bater frenético do coração, quase cega, ofuscada pela presença incorpórea cada vez mais próxima.
Busco forças para olhar para frente e vejo que, alguns metros além, o paredão de pedra invade a calçada, bloqueando a passagem. O terror é como um vagalhão branco, gelado, vertiginoso. É um afogar-se, onde nada e tudo tem sentido e o corpo quase que anseia por se deixar levar, sem resistência.
Não sei como, vinda de algum lugar dentro de mim, minha própria voz ecoa, incisiva:
- Quer morrer assim, como um rato, uma barata esmagada contra a parede? Vai morrer, não vai? Então morre de frente, olhando para aquilo que te mata!
Uma fúria enorme toma conta de mim. Fúria e força.
- Não, não vou morrer de medo. Vou morrer é de outra coisa e o que quer que me mate, não vai ter minha ajuda, não!
Volto-me, num repente, e refaço o caminho, decidida, em direção a meu algoz. Ele está alguns metros atrás, estancando ao perceber meu retorno. Aguarda-me, imóvel e silencioso.
- O que quer de mim? Pergunto, agressiva.
- Porque me segue? O que deseja? Não me importo mais com o que vai me acontecer, cansei de fugir, ouviu? Só não vou morrer sem saber a razão.
O desconhecido, tez morena, feições mediterrâneas como eu, ergue o rosto e me olha sem simpatia, hostilidade ou reconhecimento. A voz grave, como a minha, responde serena:
- Eu só queria saber se você era capaz de me encontrar.
Acordo num salto, suando, o coração aos pulos, tremendo, numa mistura de medo e exultação. O ambiente de sonho se desfez, mas aquela força última, encontrada, se manteve. Sabia que algo decisivo se passara dentro de mim. Não entendi bem, nem me preocupei em interpretar as minúcias e significados deste sonho. O que sabia é que eu teria forças para enfrentar, o que fosse. E ia viver, até morrer, não abrindo mão de um minuto que fosse, dessa vida. Algum tempo depois, realizei uma mudança radical nela, indo de encontro ao desconhecido. Não morri, muito pelo contrário.
Hoje, vejo que muitos e múltiplos significados podem ser dados à esta experiência onírica. Mas, continuo achando que o que importa nela é me mostrar que vale mais morrer viva do que viver morta de medo. Desconfio que o sonho deste sonho vem me lembrar a não esquecer aquilo que, vez em quando, eu me esqueço de lembrar.

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terça-feira, março 15, 2005

Saudades do blog

Lembro-me agora de estar falando com alguém e dizer-lhe que era necessário tempo para sedimentar uma determinada experiência, especialmente as que foram importantes, as que tiveram uma cota significativa de prazer e dor.
Como camadas geológicas, tudo que foi vivido e se foi, não desaparece de fato. É depositado no fundo de nossas mentes, oculto sob novos e sucessivos acontecimentos.
De tempos em tempos, escavamos, sondamos o solo de nossas memórias ou então, alheio a nosso esforço e vontade, algo acontece e provoca uma fenda, uma alteração tal em nosso mundo, que o sedimentado fica exposto.
O que é encontrado, varia. Pode ser de maior ou menor valor, dependendo do momento e da necessidade, pode precisar de um refinamento para ser usufruído ou não, pode ser mais atraente ou menos desejável.
Mas, de qualquer forma, o que vem à tona é originado do mesmo solo onde nossas raízes foram fincadas.
Saudade do blog.

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