Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

terça-feira, setembro 27, 2005

MISERICÓRDIA

Annam sentia-se incrivelmente cansado quando afastou o tabuleiro de xadrez à sua frente e foi preparar o chá vespertino. O clima quente e úmido de Malacca não ajudava em nada a melhorar sua dispnéia, companheira de uma insuficiência cardíaca antiga. Acocorou-se diante do fogo, pondo a água para ferver no velho bule de alumínio. Buscava a caixa do chá na mesa próxima quando ouviu distintamente:
-Misericórdia!
Com o braço e a respiração em suspenso, o homem buscou o vivente que adentrara sem notícia.
Misericórdia ele exclamou também, ao perceber que a palavra não vinha de vivente nenhum, pelo menos, não no sentido que vivente sempre tivera para ele. Mais forte do que parecia, o coração de Annam, sobreviveu ao choque de perceber que a voz viera do bico enegrecido do bule ao fogo. Olhando o utensílio gasto e cheio de mossas, revelando-se sem aviso ou preparo, teve a certeza de que, o que quer que lhe fosse pedido, não lhe seria possível recusar.
Os vizinhos, os primeiros a perceber a mudança espantosa no idoso, não tardaram a buscar também alívio e conforto no vapor e nas folhas de chá.
Annam recebia a todos, envolto em nuvens nascidas do bico fumegante, orientava os aflitos em suas dores, por vezes enfático, outras vezes hesitante, atento aos sibilos que emergiam do vasilhame. Ao final da cerimônia, distribuía pequenas quantidades do líquido retirado do bule a serem ingeridas em horas contadas.
Em pouco, a casa não mais comportava o afluxo de pessoas buscando misericórdia. Filas se formaram diante da casa pobre e humilde, exigindo a construção imediata de um templo em terreno próximo.
Encimando a construção, um bule gigantesco sobressaia no telhado. Imenso, esmaltado em cores claras, espalhou espanto e interesse pela cidade inteira. Os crédulos de origem cristã diziam que o bule era a encarnação de um antigo jesuíta português, queimado vivo no velho forte durante a invasão holandesa. Aqueles de origem muçulmana falavam de um emissário do profeta revelado na fumaça enquanto os budistas viam com serenidade o objeto, mais uma das formas evidentes de Buda.
Não levou muito tempo para que a inquietude tomasse conta da região, a estranheza ao objeto do culto sobrepujando a curiosidade inicial. Murmúrios sobre fanáticos, seitas demoníacas passaram a ser ouvidos nos mercados, nas praças e lugares de oração.
Da estranheza ao temor, um passo. Do temor ao ódio, o alcance de um braço.

Autoridades da Malásia prenderam nesta quarta-feira 58 seguidores de uma seita bizarra que cultuava um bule de chá gigante, dois dias depois de a sede do grupo ter sido misteriosamente incendiada.
A agência oficial de notícias disse que os presos tinham idade entre 20 e 60 anos. A seita, que acredita que o bule tem propriedades curativas, funcionava no nordeste da Malásia, área de forte presença muçulmana. Autoridades religiosas tornaram ilegal a seita do bule argumentando que esta era fora dos padrões
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domingo, setembro 04, 2005

Falando de um outro João: João Silvério Trevisan

Citei um João para falar de outro João.
João Silvério Trevisan é criador e coordenador da Oficina Literária do SESC-SP e do Balaio de Textos. A Oficina e o Balaio, criados há 7 anos, tem sido um lugar único de troca e criação para todos aqueles que se interessam e amam a literatura e que não podem, por motivos diversos, participar de programas regulares de oficinas de prosa e poesia ao vivo.(vide artigo de Tereza Novaes )
Tive o privilégio de participar da décima terceira oficina, recém terminada.
Nela aprendi, pensei, briguei, discuti e escrevi.Escrevi mais, escrevi melhor. Participo de outros grupos de discussão literária, ouso mais, até penso em participar de concursos! Não é este o sentido de uma oficina?
Apresentar o aprendiz a seus intrumentos e despertar nele o desejo e os recursos para melhor expressar-se através de sua criação?
Infelizmente, tomei conhecimento da intenção do SESC tirar a Oficina e Balaio de sua programação. Os motivos, desconheço.
Neste latejante mundo, qual é o sentido de encerrá-la?
Srs Coordenadores do SESC, não o façam.
A espécie humana procura mais do que rotina e lógica nas inquietudes da vida. Para poder mais do que sobreviver, viver, precisamos criar.Precisamos de tempo e espaço para tal.
Precisamos do Balaio de textos e da Oficina Literária de João Silvério Trevisan e de todos os lugares onde a norma não seja a corrupção, a repetição e a alienação da criatividade humana.

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Pensando em João


“Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente...”
( Guimarães Rosa )

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