Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

quinta-feira, abril 29, 2004

O RINOCERONTE MÍOPE

Um tablóide na internet assinalava a notícia de que um grupo de ingleses, ao visitar o West Midland Safari Park em seu Renault Laguna, parou para fotografar Sharka, um rinoceronte de 12 anos de idade e 2 toneladas. O animal tentou copular com o automóvel no qual estavam, montando sobre o veículo e o perseguindo, ofegante. O repórter comenta, encerrando a notícia, de que o grupo saiu incólume, embora assustado e com o carro avariado.
Ao ler, ri muito da maluquice da situação estapafúrdia, lembrando-me de que, num parque semelhante em São Paulo, uma vez uma girafa mordeu a calha da janela de meu carro, quebrando-a e, acrescentando o insulto à injúria, babou profusamente sobre o vidro e meu braço junto à janela. Aventuras de Nina Clouseau.
Deixei a notícia de lado, envolvida no dia a dia.
No entanto, descobri-me pensando em Sharka, novamente, ao final do dia. E outra vez, não mais achando engraçado. Afligiu-me. Não sei as respostas corretas, biológica ou zoologicamente aceitáveis para o comportamento do paquiderme. Sei o que a história me suscitou depois. Perplexidade e inquietação.
Ao repensar sobre o acontecido, vi-me rinoceronte. Aprisionada num parque, tendo meu habitat e minha vida sistematicamente invadidos por seres e situações estranhas a mim, espetáculo patético para turistas curiosos.
Pensei se não seríamos todos, em alguns momentos, rinocerontes, encouraçados, abrutalhados e míopes, aprisionados e alienados de condições mínimas de existência que preservem o sentido de ser.
Não sou um rinoceronte quando crio carapaças para conseguir viver no Rio de Janeiro?
Não sou um rinoceronte, míope para as crianças a vender balas, fazer malabarismos, simplesmente mendigar ou expor suas mazelas nos sinais de trânsito?
Em Salvador, no Acarajé da Dinha, quiosque mais que conhecido num largo da cidade, mal conseguimos comer o famoso quitute, de tantos pedintes à nossa volta. É preciso ter a pele dura e a vista curta para sentir bem estar e felicidade frente à miséria humana.
Sou um rinoceronte quando não mais consigo distinguir, com clareza, se paranóia ou mero instinto de preservação, o medo que me faz recear as saídas mais inocentes, minhas e daqueles a quem amo, sem saber se voltaremos incólumes para casa.
Fui ao meu amado Google saber mais sobre ser rinoceronte.
Lá, descubro que são espécies ameaçadas, mantidas em reservas protegidas dos homens que os ameaçam em seu próprio ambiente, alvos, como tantas espécies, da cobiça humana por suas peles, ossos, penas e pêlos ou mera exibição de poder.
Também fui buscar a peça homônima de Ionesco, talvez tentando entender porque me sentia tão rinoceronte.
Ionesco, assinalara, muito antes do mal estar que o rinoceronte míope me provocou, que a impermeabilização ao sofrimento que não impede a morte de uma existência pessoal.
A peça trata da perda da condição humana, da acomodação e da indiscriminação que vai tomando conta de toda uma cidade, metamorfoseando seus habitantes em rinocerontes, com a exceção de um único homem, que resiste à tentação de tornar-se rinoceronte, iguais aos outros, tentando, como pode, manter-se homem em meio a uma rinocerontização progressiva.
Um artigo de Murilo Badaró pode ser lido, na íntegra, através do link. Num pequeno trecho deste, ele comenta sobre a peça: “É uma crítica genial contra o estado de rinocerontização em que estão envolvidas muitas sociedades modernas, povoada de rinocerontes representados pela adesão consciente ou inconsciente à permuta do belo pelo feio, do culto pelo inculto, do lícito pelo ilícito, do justo pelo injusto, do moral pelo imoral, do correto pelo incorreto, enfim, a distorção a todos envolvendo a ponto de não ser mais possível ou até mesmo razoável a reação”.
Associo, entre outras “viagens”, ao lado cruel e doentio da globalização, à cegueira branca de Saramago, à metamorfose de Kafka, ou, indo mais além no passado, aos soldados de Ulisses, transformados em porcos por Circe. A literatura é pródiga em advertências sobre a importância da manutenção de nossa humanidade. Hoje, no entanto, foi Sharka, o rinoceronte míope, que me ajudou a perceber quão vulneráveis podemos ser a uma rinocerontite aguda.
O rinoceronte de Dürer

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terça-feira, abril 27, 2004



Os deuses foram piedosos e clementes. O blog volta à sua normalidade inquieta.


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quarta-feira, abril 21, 2004

Possuo uma característica singular que me acompanha desde sempre. Mais que uma característica, chamo hoje de estilo pessoal.
Qual é meu estilo? Digamos que tenho fortes suspeitas de ser parente próxima do
Inspetor Clouseau .

Sabe aquela pessoa que vai pegar um copo na festa de final de ano da empresa e ele está rachado, vazando a roupa toda? Ou vai ser prestativa em pegar um objeto caído ao chão e dá uma cabeçada no estômago do proprietário? Conhece alguém que, apresentada à sogra em perspectiva, derruba o cafezinho em seu vestido im-pe-cá-vel de linho branco?
Já dei cotovelada no olho de um namorado, ao abrir uma garrafa de vinho num jantar romântico. Já me aconteceu de promover efeito dominó em mercadorias num supermercado. Já consegui tropeçar no hábito de uma freira, rolando eu e ela pelas escadas, eu enroscada no véu arrancado de sua cabeça, ela de cabeça tosada à descoberto e o hábito na cintura. Já degustei uma linda lagosta cozida e, ao usar a pinça para retirar a carne branca e tenra da pata dianteira, pude ver um líquido fervente espirrar da pata, num jorro surpreendentemente forte, deslizar entre o pescoço e o colarinho do comensal atrás de mim. Larguei a pinça, fiz cara de paisagem e permiti que o olhar furibundo da vítima incriminasse meu companheiro de refeição.
Como acontece com meu querido inspetor, tudo se ajeita no final. Se intervenção de deuses bem humorados a se divertir com tanta falta de jeito ou pela inocuidade dos fatos, não tenho muita certeza. Melhor rir da situação e seguir em frente.


A ligação disso tem a ver com o fato de que, não contente em ter me enrolado toda para consertar os problemas com o blog, fui inventar novidade! Só podia resultar em encrencas em sucessão, como as caixas no mercado.
Aproveitando a visita de um técnico em informática para resolver uma troca de placa de vídeo, tentei resolver a lentidão absurda e a cegueira branca que se instalava quase toda vez que tentava abrir o blog.
Mexe daqui, fuça dali, a primeira coisa a ir para o espaço foi o contador, primeiro suspeito de provocar conflitos entre scripts (repetindo o que ouvi). Problema “resolvido” uma hora depois, pela extirpação pura e simples do contador. Parecia que tudo caminhava bem, já tarde da noite, quando percebi que os comments não entravam. Outra luta. Duas horas perdidas. Não contente e já madrugada, resolvo pedir-lhe que fizesse um índice nos links, o que resulta no enlouquecimento da fonte do blog e a subseqüente aparição de caracteres estranhos que tornam a página do “Almas Inquietas” aparentada com uma tábua de hieróglifos.
Help, I need somebody’s help!
P.S.- Já melhorei muito minha motricidade.
Em todo caso, prometo tomar um cuidado extra.

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segunda-feira, abril 19, 2004

LETTER TO A DISTANT CLOSE FRIEND



Dear Kathy,
I wish I could see the wild flowers in the desert with you. I almost did, reading your wonderful letter. Once, quite a few years ago, I went to Las Vegas and had gone to the desert for a whole day.
The strange beauty in it fascinated me. All those wide spaces, the changing colors of the landscape, the feeling of our real but very, very tiny size compared to the outside world. Reminded me of another experience into the depth when I dived in Cozumel and I was marvelled and scared to death at the same time.
Now, thinking about this, I felt that, into the ocean or into the desert, I've had two possibilities:
Being terrified by the grandeur of the experience and allowing that I could be crushed by it. Or allowing that I could blend in it, in that strange but wonderful feeling of belonging to something much bigger than me, being part of with without trying to know or control the feelings.
In one time, I ran away and lost a wonderful opportunity to live a new experience. Another time, I chose to stay. It worthed every second. I've been facing and running away from life. Definetely erratic!
I think that both experiences you've told me - the desert and the meeting with the astronaut lady are linked in this point - they are the amazing experience of facing something supposedly well known, but finding that the are not, at all, known.
The wondrous fact is that the same fragility that almost scares you is the proof of your strength. The complexity of human being is something that I love. Or hate. It depends on the day. “Oh, brave new world...”
I’m pretty sure that we are like those wild flowers in the desert. Seeemly fragile, but with a resilience inside that make us blossom, even in adverse conditions.
Thanks for reminding me that we can choose more than one path when going on. I was almost forgetting that we can be crushed by our limitations or we can marvel and believe in the capacity of surviving and blossoming, despite everything.
A couple of days ago, I was talking to a dear friend and she told me that I was too pragmatic lately, analyzing experiences in a very sensible but quite detached, cold way.
I answered her that I’m not like that. Pragmatic? If I were only sensible, I would die!
And she told me that’s why she thought I wasn’t in my “normal” self. I stopped to think and felt that it made sense!
Lately, I’m trying to live without magic, but being sensible is not enough to me. I miss so much the magic of being enchanted by life, falling in love with someone or life itself, that I feel that, by some stupid way, I’m trying to erase those feelings in me just because it’s hard to find them, at the moment. The “pragmatic” result is that I almost lose myself. As there’s a say in Portuguese: throw out the water bain and the baby goes out with it.
It’s like a battle inside. Dreams and expectations whispers behind closed doors even if you feel there is no magic in everyday life. In those moments you cannot see beyond the concrete. It’s difficult to believe in what is not here, at our reach.
I remember a famous scene in Peter Pan’s play when, to save the fairies, every child had to yell that they believe in them. Adults are quite unable to do that, that’s why Peter asked children to help him. This is magic. To believe in something you cannot see. If you let this belief die, a part of you dies also. I tend to forget that feelling this is like an inner fire. As any fire you have to fuel it with what you get to keep the fire alive
So, this is my actual dilemma. I think I cannot cope life without seeing light and enchantment and, at the same time, I’m exercising myself to wear dark glasses 24 hours a day!
Well, I’ve got your wonderful letter today. It enlightened my day. Thank you, my dear friend. Thank you a lot!
Love,
Nina

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domingo, abril 18, 2004

Nestes tempos de cegueira, pouco tempo, pouca criatividade e muitos problemas na minha cidade, transcrevo a coluna genial de João Ubaldo Ribeiro em 18/04/2004.
Pensadores como João Ubaldo ainda sustentam um pouco de minha fé, bastante abalada, na natureza humana, especialmente na classe política. Essa, recebe mais que minha descrença. recebe minha repulsa.
Associando com a solução irônica proposta por João para resolver os problemas de segurança do Rio, vejo a manchete da primeira página e leio sobre o enterro do líder do Hamas. Independente de minha opinião sobre o conflito entre Israel e Palestina,
não consigo entender como o mesmo povo que sofreu as barbáries nazistas, identifica-se com o agressor e passa também a cometer assassinatos ostensivos e justificados.
Homo lupus homini.

Bem, acho melhor dar a palavra ao João.

Eu sou leal

JOÃO UBALDO RIBEIRO

Estava demorando um pouco, mas acabou aparecendo neste governo também. Como se sabe, a imprensa é culpada de tudo o que acontece de ruim. Tem sempre sido assim e não vai mudar. Volta e meia alguém se lembra de que o jornalismo é uma profissão perigosa, mas pouca gente de fato se preocupa com isso, até porque o perigo só é visível para a maioria quando os jornalistas estão cumprindo missões como a cobertura de guerras. Mas o perigo é bem mais amplo e, nesta minha já não tão curta vida, tenho sabido de jornalistas assassinados, agredidos, presos e até obrigados a um tipo de gastronomia peculiar à øprofissão: comer o jornal em que se escreveu alguma coisa que causou o problema denunciado. Comer jornais pode até não ser tão usual hoje em dia, a não ser que o Fome Zero tenha feito mais progressos do que os divulgados, mas, quando comecei a carreira, na Bahia, era corriqueiro, principalmente no interior. Acredito que, com a crescente desvalorização da vida, esse costume vem sendo substituído pelo assassinato mesmo. Sai mais prático e sem tantos problemas, eis que matar ou mandar matar alguém está muito fácil hoje em dia e, segundo me contam, a concorrência é tal que o serviço pode sair por algumas poucas centenas de reais, talvez pagos com cheques pré-datados ou vales-transporte.

Agora mesmo, devemos estar assistindo, no Rio de Janeiro, a uma dessas grotescas armações da imprensa. Por falta de tempo, assisto a pouca televisão, mas, de vez em quando, passo pelo aparelho ligado, dou uma espiadinha e levo algum tempo sem saber se estão mostrando o Iraque, o Afeganistão, o Oriente Médio ou o Rio mesmo. Às vezes, é complicado distinguir, pois não é que a imprensa resolveu inventar que está havendo combates de rua no Rio e que morre mais gente de tiro aqui no Brasil do que em muitos países oficialmente em guerra? É de pasmar. Claro que ninguém tem medo de sair à rua no Rio e que os moradores da Rocinha, por exemplo, estão inventando coisas, querendo aparecer. Mais um dos males da imprensa, dar espaço a quem quer simplesmente seus quinze minutos de fama.

Não sei aonde é que tudo isso vai chegar, mas já se comenta amplamente a idéia de construir muros no Rio de Janeiro, para segregar áreas perigosas. Vejam vocês que absurdo, nós aqui na mesma situação de Berlim no tempo da Guerra Fria ou de Gaza, nos tempos de hoje. Com certeza foram as ondas irracionais inventadas pela imprensa que fizeram praticamente todos os edifícios do Rio se cercarem de grades, transformando moradores e trabalhadores em prisioneiros. Agora vem esse negócio de muros. Ninguém duvide de que eles serão erguidos e a providência seguinte vai ser a instituição de postos de fiscalização, onde os transeuntes terão de mostrar passaportes para poder entrar ou sair de áreas muradas, além de outras medidas, certamente a serem mais tarde sugeridas, como a identificação e fichamento da cada cidadão morador de área murada. Aliás, já que é a imprensa mesmo que tem e acaba por fazer implantar essas idéias, sugiro logo que, doravante, só se possa circular com crachás contendo dados básicos sobre os portadores. Ou melhor, crachás não, porque as falsificações virão logo. Tatuagens, tatuagens devem ser a solução. São indeléveis e a Casa da Moeda poderia criar modelos de difícil alteração. A idéia não é nova, até porque usada pelos nazistas em campos de concentração, mas tem seus méritos e a exponho aqui como modesta achega. O lugar para as tatuagens é que podia mudar, porque os nazistas as faziam nos braços das vítimas e aqui podemos inovar, aplicando-as logo nas testas. Com um pouco de marketing e, naturalmente, a famosa vontade política, isso podia até virar moda em outras partes do mundo.

Falo neste assunto porque me tocou fundo a exortação de nossos líderes, notadamente o presidente da República (se não foi ele quem falou, trata-se de mais uma mentira da imprensa; a imprensa mente que não se sente, como falava minha avó), quanto à lealdade da imprensa. Pela parte que me toca, fiquei meio chateado, porque nunca me imaginei desleal. É difícil julgar nosso próprio comportamento, mas creio que tenho sido leal. Posso citar logo um exemplo que considero irretocável. Como muita gente, jornalistas ou não, há bastante tempo acho que o presidente, por falta de prática, não trabalha. Por favor, não me entendam mal. Claro que, num certo sentido, ele trabalha. Faz discursos, faz viagens, faz promessas, faz reuniões, usa bonés de qualquer extração, faz uma porção de coisas. Mas não é o tipo do trabalho que agora se esperaria dele, as necessidades são outras. Com certeza, em seus tempos sindicalistas, trabalhou muito em reuniões, concentrações e ações correlatas. Mas agora essa experiência não vem servindo, tanto assim que a percepção geral (claro que em grande medida por culpa da imprensa também) é de que o governo não faz nada e o presidente— digo isto com toda a lealdade — não trabalha. Deve até ficar exausto de tanta coisa que faz, mas trabalhar mesmo, não trabalha. E, agora que o dr. Dirceu anda com problemas, a coisa se vê com mais clareza.

E pronto, vou abandonar o assunto, insisto em preservar minha lealdade. E digo mais, não vou nem ficar dizendo que ele não trabalha. Serei leal, vou procurar não discordar de mais nada e aplaudir tudo o que ele faz — ou não faz, para não deixar de lado o principal. O Dia das Mães vem aí e vocês vão ver com que discurso supimpa ele nos vai brindar (“ser mãe é brincar nas onze na pelada da vida”) e colaboraremos para seu sucesso em tudo o que pudermos. Existe algum boné especial para Dia das Mães?
JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.

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sábado, abril 17, 2004

Vou-me embora pra Pasárgada

Continuo sem acesso à visualização do blog.

Vou-me embora pra Pasárgada.
Lá sou amiga do rei.
Lá tenho o webmaster que eu quero
No blog que escolherei.
Vou-me embora pra Pasárgada.

Obrigada pela ajuda,Bandeira!

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sexta-feira, abril 16, 2004

Desde ontem não tenho acesso à página do blog.
A tela fica inundada de um branco leitoso e daí não passa, deixando-me com a sensação de ser um personagem de os Ensaios sobre a cegueira.
Tentei e consegui entrar no blogger para escrever. Só não consigo visualizar.
Fica hoje um post às cegas.
Espero que passe.

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quinta-feira, abril 15, 2004

O CLUBE E OS EXCLUÍDOS

Pelo sexto dia, a guerra no morro continua.
Guerra no morro? Guerra na cidade. 12 mortos “oficiais” até ontem.
Um chefe de tráfico é morto, suas viúvas choram na porta do hospital municipal, a comunidade teme a invasão de um outro chefe do narcotráfico para a reconquista dos pontos de drogas deixados desguarnecidos. Morto Lulu, um “capo”assistencialista, paira a ameaça da volta de Dudu, o sanguinário, “capo” mau e violento, conhecido como estrupador, vingativo e intolerante.
Há como falar de outra coisa? Há como chamar de paranóia o medo cotidiano em ver os filhos saindo de casa para a escola e temer uma bala perdida num tiroteio? Há como se fazer de surdo e achar que não é comigo quando ouço de um morador do morro que não pode ir trabalhar, pois sua casa está perto demais do QG dos traficantes? Há como não me horrorizar quando ele explica, resignado, que ao ouvir o tiroteio, protegem-se, ele e a família, em baixo das camas, até que os tiros cessem? Há de chamar de insanidade quando nos acostumamos a ver os riscos luminosos das balas cruzando o céu, macabros fogos sem artifício, ou ouvimos as rajadas de AR-15 não mais perturbarem o sono, já habituais?
Como permanecer indiferente a este quadro de violência desmedida e galopante? Como ignorar a alienação social que permeia nosso olhar, instilando uma indiferença crescente ao meu semelhante, que o torna cada vez mais dessemelhante?
Os crimes contra o ser humano estão assumindo proporções e requintes de tortura cotidiana que nem a ficção mais perversa poderia reproduzir.
Nos descaminhos desse mundo globalizado, vejo meu povo, minha cidade, minha família, no fogo cruzados entre os poderosos, os pertencentes ao clube globalizado, como diria Bauman, e os excluídos da produção, do consumo, os sem cidadania, que aprendem na carne a regra do nada a perder.
Vejo-me, dia a dia, criando guetos, físicos e emocionais, aprendendo, também na carne a inexistência da convivência do coletivo e de uma cidadania compartilhada. Assisto, petrificada, a instauração da lógica da eliminação, a guerra sem tréguas, entre os que excluem e os que são excluídos.

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quarta-feira, abril 14, 2004

Há tanta coisa que gostaria de escrever aqui. Tanta coisa a dizer, compartilhar. Mas fica esse hiato entre intenção e gesto. Não tenho tempo.
Hoje, mais que nunca, a rotina me irrita quando rouba meu tempo de mim.

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segunda-feira, abril 12, 2004


Em 5 dias, a guerra pelo controle do tráfico matou dez pessoas na cidade.
A governadora e seu marido, sr secretário de segurança, estavam em férias.
Em férias continuaram.
Volto do paraíso baiano para cair no inferno carioca.
Chicago é aqui.

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quarta-feira, abril 07, 2004

VOCÊ JÁ FOI À BAHIA?

Você já foi à Bahia?
Não?
Então vá!

Se Nosso Senhor do Bonfim ajudar, fico em Salvador até segunda-feira.
Uns dias prá vadiar, num mar que não tem tamanho e um arco-íris no ar.



Vendo o por do sol em Itapoã e a vida melhor no futuro.



Um beijo e boa Páscoa a todos.


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segunda-feira, abril 05, 2004

TEMPOS DE MUDA

Iris by Vincent Van Gogh


Laisinha e Fata Morgana lembram-me acerca de uma bonita música do Guilherme Arantes como sugestão de resposta à pergunta lançada no post anterior - como será o amanhã?
Apesar de bela, ela não me é pessoal, como o é uma outra, ao me indagar sobre o futuro.
Tempos Modernos foi, num momento crucial de minha vida, uma espécie de referência e apoio durante tempos mais que difíceis. Ainda é, e talvez valha a pena comentar, se conseguir vencer minha resistência a expor-me um pouco mais do que já mostram meus escritos.
Há algum tempo, passei por tempos difíceis. Tão difíceis que pensei, nas perdas perder-me de vez, ao quase perder o amor ao viver. No auge dessa crise, deparei-me com um livro que tinha como epígrafe um pequeno trecho de uma carta de Van Gogh ao irmão:
“O que para os pássaros é a muda, a época em que trocam de plumagem, a adversidade ou infortúnio, os tempos difíceis, são para nós, seres humanos. Uma pessoa pode ficar nesse tempo de muda; também pode sair dele, como que renovada.” Cartas a Théo, carta 133

Lulu Santos e Van Gogh foram meus companheiros nesses tempos. Ouvia compulsivamente as músicas de um e lia e relia as cartas de outro. Elas me ajudaram a lembrar do que eu ainda não podia saber, mas precisava acreditar que existisse: uma vida melhor no futuro.
Nos tempos de muda, o pior a ser vivido não é o sofrimento causado pelas mudanças ou perdas. O pior é a sensação de que este tempo não passa, a perda do sentido de existir, a perda da esperança.
Sobrevivi ao tempo de muda, descobrindo que, ao contrário do que eu temia, não me perdera de mim.
Eu mudara. Não preciso ser sempre a mesma para ser eu mesma.
É nesse sentido, como uma declaração de amor à vida, de manutenção da esperança, de gratidão aos tempo de muda que nos renovam que ouço:

Tempos Modernos :

Eu vejo a vida melhor no futuro
Eu vejo isso por cima de um muro
De hipocrisia
Que insiste em nos rodear.
Eu vejo a vida mais clara e farta
Repleta de toda satisfação
Que se tem direito
Do firmamento ao chão.
Eu quero crer no amor numa boa
Que isso valha pra qualquer pessoa
Que realizar
A força que tem uma paixão.
Eu vejo um novo começo de era
De gente fina elegante e sincera
Com habilidade
Pra dizer mais sim do que não.
Hoje o tempo voa amor
Escorre pelas mãos
Mesmo sem se sentir
E não há tempo que volte amor
Vamos viver tudo o que há pra viver
Vamos nos permitir.


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sábado, abril 03, 2004

Dizia uma amiga...



Dizia uma amiga:
Podemos viver mil anos,
não aprendemos a não sofrer.
A angústia de quem pensa:
É privilégio, maldição,
ou mero preço por viver?
Encontrar o hiato, o buraco, o fracasso
o tropeço, a perda e a dor.
Batalhar a sorte, o ganho, o fruto
a posse, a idéia e o amor.
Arriscar, sem saber de antemão.
Mergulhar, no poder da criação.
Ter coragem prá não temer o não.
Ter coragem prá aprender a ter
sem ter medo de perder.
Ter coragem prá mudar,
de ousar trocar de lugar.
Descobrir, que se a vida
muitas vezes faz doer,
ainda assim,
é lugar prá se viver
com prazer.

"Como será amanhã?
Responda quem puder..."

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quinta-feira, abril 01, 2004

AINDA NÃO

There’s always one to turn and walk away
And one who just wants to stay.
But who said that love is always fair?"

Why Should I Care



Não estou pronta.
Ainda não posso me despedir.
Não tomei, de todo, posse
do que nele, em mim, descobri.
Não fui buscar o que, de mim, a ele entreguei.
É com ele, é com ele dentro de mim,
é a ele que ainda chamo, invento diálogos,
crio cenas, produzo discursos, ensaio o adeus.
Conjugo o passado mais que presente,
fazendo lembrar o que finjo esquecer.
Ele realmente se foi?
Não importa, se longe ou perto está,
se ainda há nele, muito de mim.
Não importa, enquanto marcada estiver,
por essa sensação de a “menos”,
de que tenho menos, posso menos,
sinto menos, vivo menos.
Não estou pronta, enquanto pensar
que com ele está o melhor de mim,
o melhor que ele, em mim, revelou.
Não, não estou pronta.
Não, se ainda não sei,
no entendimento que cicatriza toda ferida,
que dona de mim, sempre fui
e de nada mais, nunca serei.

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