Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

segunda-feira, setembro 27, 2004

MEDO DOS MEDOS



imagem: Suran - Fear

Tenho medo dos meus medos.
Não tenho medo de todos os medos. Só de alguns.
Não tenho medo de ter medo de ladrão, de voar de avião (esse medo nem tenho mais, só não gosto, aleluia, menos um!).
Não tenho medo de ter medo de cobra, mato cerrado ou dar vexame numa situação de cerimônia, quando derrubo alguma coisa e mancho a roupa nova.
Também não tenho medo de ter medo quando me defronto com uma situação desconhecida, ou de ficar ansiosa querendo impressionar alguém que desejo que me deseje, nem tenho medo do medo de me sentir desamparada.
Tenho medo de outros medos meus.
Tenho medo do medo da dor, do medo do câncer, doença implacável que levou meus pais e antes de cumprir seu ato final, torna o viver indigno de ser chamado de vida e que me emburrece, levando-me a agir como se fosse imortal.
Tenho medo do medo que tenho do ódio, do ressentimento e do rancor. Tenho medo porque percebo que, mais do que o medo do objeto ou pessoa em si, o que realmente me atemoriza é descobrir que aquilo de eu mais tema, more também dentro de mim.
Ao invés de perguntar a alguém como pode fazer algo comigo, eu deveria lhe perguntar: Como pode despertar em mim coisas que não gostaria de saber que também sinto e possuo?
O medo vem do medo de não conseguir apenas sentir, de temer me ver de tal forma tomada por estes sentimentos, que não conseguiria escolher como agir.
Tenho medo do meu medo da maldade, que tantas vezes me torna meio cega e incapaz de discriminar a crueldade, deixando-me mais exposta a ela. Tenho medo do meu horror à violência, por perceber o contágio insidioso que ela promove e que conclama a minha violência a se exprimir. Tenho medo do meu medo de ser má e cruel, pois me impede de enfrentar com serenidade tanto a um como a outro.
Tantas vezes optei pelo “conforto” mais que relativo do lugar de vítima, a custo sempre alto e pouco recompensador. Outras vezes, silenciei. Silenciei tanto que calei também minha escrita, minha alegria, meu prazer em criar. E não impedi minha zanga, minha raiva e minha mágoa de existirem. A mágoa é uma má-água, como alguém me disse um dia, que fica estagnada dentro da gente e nos ajuda a adoecer, de corpo e alma.
Recentemente, quase encontro um dos meus medos maiores, a doença que temo e tenho como herança genética. Precisei me defrontar com as piores possibilidades para poder melhor enfrentar esta herança que, felizmente, não se apresentou.
Maldade, ódio, violência, também são minha herança, herança não familiar, mas de minha condição humana, como também o são bondade, amor, solidariedade e reparação.
Se a mágoa é uma má-água e a raiva e a vontade de calar ou destruir existem, não adianta negá-las, suprimi-las ou ignorá-las. Basta lembrar que há também a capacidade de amar, de se alegrar com pequenas coisas, de não desistir de um sonho ou meta mesmo quando eles não se realizam, de poder acreditar no futuro e me perceber inteira, mesmo com falhas, lugares escuros e demônios adormecidos.
Espero aprender a não mais temer meus medos ou meus males. Reconhecê-los, em mim, me permite ter a determinação de encontrar alternativas ou de criar derivativos para superá-los.

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domingo, setembro 26, 2004

RODA VIVA

"..a gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá.” ( Chico Buarque- Roda Viva)

Paul Gauguin - Woman in the waves

Quando ouvi pela primeira vez Roda Viva, a música, mais que a letra, provocou-me um sentimento estranho, uma inquietação profunda. Quase que não gostei dela. No entanto, ela sempre encontrou ressonância em cada parte de mim.
A melodia evocava um movimento intenso, visceral, concentrado no esforço em seguir um curso determinado e a percepção de que este curso era inexoravelmente desviado por algo mais forte. Uma rebeldia inata tratava os sentimentos percebidos como um duelo, sim, duelo entre a determinação de alguém contra uma outra força maior, além, terrível e poderosa em sua grandeza.
De um lado a paixão, prerrogativa do humano, singular, específica, direcionada. De outro, a impessoalidade do incontrolável, a abrangência do incognoscível, de tudo que está neste além.
É claro que, na época, eu achava que só havia duas soluções possíveis para este duelo. Uma, a resignação ou o abandono - morte dos sonhos e projetos - que, se não me matava, deixar-me-ia não viva, o que não faria tanta diferença, afinal.
A outra seria a luta, a rebeldia, o não conformismo. Mantém-se a pessoa viva, sem dúvida, mas sempre em guarda, machucando-se a todo instante.
Já há algum tempo, venho percebendo outras opções, nenhuma melhor que a outra, em princípio, e por isso, nenhuma única e constante. Dependendo das minhas forças, dependendo da força das circunstâncias, de minha capacidade de perceber mais ou menos claramente tudo isso, resigno-me, luto, negocio, espero, procuro outra coisa.
Vem, então, uma associação imediata com o mar, presença permanente em minha vida. Meu pai ensinando-me a boiar nas águas mansas da ilha do Governador e a contar as ondas, a sair e entrar no mar agitado de Copacabana. Os amigos, um namorado, mais ousados e com mais intimidade, a me mostrar o verde mais profundo das correntezas no mar aberto da Barra da Tijuca, os rodamoinhos a evitar. A usar a força da correnteza a meu favor, não seguindo em linha reta em direção à praia, mas em diagonal, alternando minha força e a da água, para chegar onde queria, à praia, mesmo que não fosse exatamente ao ponto de onde saí.
O fato é que não há muita escolha em relação à roda viva (originalmente digitei roda vida, ato falho mais que preciso) no que trata de controle ou não. Usar nossa voz ativa para mandar no próprio destino é gastar vela com mau defunto, como diria minha avó.
A voz ativa talvez seja melhor usada no modo se trata a roda vida, roda viva da vida.
Se escolho tratá-la como amiga ou inimiga, se consinto entrar nela e usufruir da experiência ou permaneço ao largo, tentando me apoderar dos controles, observando outros em seus altos e baixos, aparentemente ilesa, irremediavelmente condenada a uma visão única e rasteira.
O mar, de novo, evoca o medo e a alegria em buscar uma onda, em nadar além do quebra mar, esperar aquela mais forte, a mais inteira, a força da água a engolfar o corpo, a perda de controle desdenhada pelo prazer da entrega, o gozo de chegar, mesmo arranhada ou aos trambolhões, ou engolindo água. Triunfantemente viva. Na roda viva.

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quinta-feira, setembro 16, 2004

MAIS DE 40


O que falar sobre a mulher aos quarenta? O que dizer que já não tenha sido exaustivamente discutido sob as mais diversas vertentes - sociológicas, psicológicas, existenciais? O que torna esta etapa de vida particularmente merecedora de tanto interesse?
Herbert Prochnow sugere que talvez seja porque “os jovens e os velhos tenham as respostas. Quem está no meio do caminho fica com as perguntas.”
Embora qualquer época vivida, se vivida na acepção mais plena do termo, faça o mesmo, o período que se estende entre os quarenta e os cinqüenta anos é uma fase marcante na história pessoal de uma mulher. Como na adolescência, o corpo, mais uma vez, começa a se transformar, apesar das múltiplas precauções que o zelo físico e as biotecnologias, preocupação pós-moderna, oferecem. Percebe-se ou é antevisto, algo que, se antes era quase uma ficção, passa a ser uma realidade tangível e ameaçadoramente próxima – envelhecer é um fato da vida e acontece com todos, sem exceção, exceto, é claro, quem morre antes.

Numa sociedade que hipervaloriza a estética, a juventude e a rapidez, envelhecer pode ser uma experiência assustadora se o passar do tempo parece ser uma ameaça à integridade de ser e à auto-estima. Se as mudanças colocam em risco uma integridade essencial, serão vigorosamente rejeitadas, numa proteção aflita e inútil contra algo que escapa ao controle, a passagem do tempo. Por isso, hoje, não é possível mais falar apenas de infância, adolescência, vida adulta e velhice. O esforço de perpetuar um estado de juventude propiciou o surgimento de uma condição que podemos chamar de adultescência, termo criado a partir da fusão de duas etapas clássica: a vida adulta e a adolescência.
Segundo David Rowan, em Um glossário para os anos 90, adultescente é aquela pessoa imbuída de cultura jovem, mas com idade suficiente para não o ser. Geralmente entre os 35 e 45 anos, os adultescentes não conseguem aceitar o fato de estarem deixando de ser jovens.
Levamos cada vez mais tempo e dedicamos mais esforços para postergar as transformações corporais inerentes ao viver humano. Levamos tanto tempo para aprender a conviver com as mudanças que, quando aprendemos, já está muito tarde para termos usufruído do prazer de vivê-las, no esforço de adiá-las, indefinidamente. Tempos de mudança são sempre complicados e só passíveis de serem tolerados se, dentro da mutabilidade inevitável, uma certa estabilidade é obtida, um ponto de equilíbrio onde o indivíduo possa se apoiar, uma área de sustentação durante o processo de transformação. Poder ser a si mesmo, sem ter de, necessariamente, ser o mesmo, sempre.
A fase dos quarenta, talvez seja um dos períodos em que fiquemos mais conscientes acerca da importância do tempo em nossas vidas. Mais ou menos como acontece na adolescência, parece ser um tempo entre tempos, com a diferença de que o apogeu da vida adulta, em vez de ser uma meta a ser alcançada no futuro é um presente que precisa ser mantido a todo o custo, pela possibilidade aterrorizante de se converter em experiência passada.
Falar deste tempo é como olhar num espelho que está a dez centímetros do próprio rosto. De imediato, o que chama a atenção são as marcas do tempo numa face desconhecida. É o que acontece quando se está próximo demais do fenômeno a ser observado. Perde-se a visão do conjunto em detrimento à percepção aguda do detalhe.
Só depois da estranheza e da recusa que, aí sim, através do afastamento que a estranheza provoca, podemos estabelecer certa distância e identificar, com alguma serenidade, a face daquele estranho que nos observa e que também parece familiar, e nele reconhecer, juntamente com o rosto da maturidade, a criança e o jovem que um dia fomos. A bagagem de uma boa parte da vida está ali, nos traços mais marcados, no corpo menos jovem, a pele com menos viço. Mais curioso ainda, é descobrir que eles, a criança e o jovem, na verdade, nunca se foram. Apenas não são mais os protagonistas dos acontecimentos cotidianos. Cederam seu lugar àquele rosto maduro, desconhecidamente conquistado, mas que nos pertence integralmente.

Aí vem o prazer. O prazer que advém de prescindir cada vez mais da aprovação alheia, tão necessários na juventude, mas dispensáveis, em grande parte na maturidade.
Vem o prazer de perceber que o amor e o ardor não dependem da carne firme ou da pele jovem ou mesmo do nível dos hormônios, mas daquilo que vem de dentro da gente e que “não tem descanso, nem nunca terá, que não tem cansaço, nem nunca terá, que não tem limite” (Chico Buarque/ O que será).
Vem da força de ter sobrevivido aos tempos difíceis e de ter saído deles renovado e mais forte.
Vem do prazer de saborear os momentos de felicidade, das pequeninas coisas, de abrir mão da urgência, do agora ou nunca, de poder se perguntar diante de algo que lhe incomoda: Qual o valor disso, daqui a um ano? E, dependendo da resposta, poder escolher o que fazer ou dar de ombros e dizer:
Dane-se!
Vem da percepção de que o tempo não é um inimigo a ser combatido, mas um grande aliado, se reconhecido como tal. Ele nos dá muito, só não trabalha numa clínica estética.
Vem de poder dizer: Era bem legal lá atrás, mas eu prefiro agora.

imagem: Mulher que sonha - Maria Clarice Saraf









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