Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

domingo, fevereiro 29, 2004

SOBRE GRATIDÃO



Diz um provérbio francês que a gratidão é a memória do coração. Acho que é poder manter vivo, dentro de si, o que de bom a vida nos dá.
Quando viajei, tive vontade de deixar um texto mais longo no blog. Escolhi um dos contos que fico guardando para um dia, quem sabe, serem publicados.
Hoje, lendo os comentários, senti-me lado a lado, irmanada com cada um que teve o carinho de escrever sobre o texto. Fiquei receosa de ser piegas, mas reconhecer afeto não é pieguice. É reconhecer a igualdade entre dar e receber.

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sábado, fevereiro 21, 2004

SOBRE A VIDA DAS BORBOLETAS

Ainda de pijama, abre a porta da cozinha. O jornal está sobre o carpete da entrada, pesado de ofertas, procuras, drama e cotidiano. Recolhe-o, pousando-o ao lado do jogo americano. A mesa, posta de véspera, parece vazia. Abre o armário, pega a leiteira - a água no fogo, suporte, filtro - três colheres de pó, gestos maquinais. Espera a água ferver.
Sentada à mesa, os pensamentos se esparramam na alvura dos azulejos. Os armários tão caros, a geladeira, tudo é branco. Até relógio da parede. Para marcar o tempo de vidas em branco, pensa com ironia. Parecia tão bonito, agora me enjoa, tudo igual. Três colheres e esse tanto de água? Puro desperdício. Vou tirar uma colher. A água, deixa pra lá, escaldo a garrafa térmica.
Folheia o jornal, desinteressada, a mente patinando no maldito branco, teimando em voltar para perto do poço de onde fora tão difícil sair.
Lembra do parque perto de casa. Vou caminhar, decide, levantando da mesa intocada.
-É um exercício aeróbico, qualquer médico indica, evita a osteoporose, é importante buscar opções saudáveis.
Falando sozinha e ainda parecendo o médico da empresa no check-up? Melhor tomar cuidado, deve estar ficando doida. Na véspera, percebeu o olhar de espanto da pessoa no carro ao lado, no sinal. Tinha esquecido que estava só - de fato. Estivera tão absorvida na discussão, que nem percebeu que, agora, nem o corpo estava mais lá. Brigava com um banco vazio.
Termina de se vestir. Verifica a roupa, o tênis, a bolsinha na cintura.Tem andando meio desligada, é difícil lembrar dos detalhes do dia a dia. Inventaria os pertences:
- A chave do carro, de casa, algum dinheiro, o celular. O celular não. Esse fica em casa.
No parque, a friagem da manhã antecipa o inverno. Uma neblina leve cobre as árvores e a chuva pesada da véspera deixa o lugar estranhamente vazio, quase como se fosse uma floresta de verdade, desabitada, não um parque, no coração da cidade. Mais tarde virão as famílias, as crianças, as bicicletas, os namorados. Mas não agora. Não faria sentido. Melhor assim. Como se estivesse em outro mundo.
O caminho definido, com marcos amarelos, indica a direção e o tamanho do percurso. Não precisa escolher que rota seguir. É circular, vai acabar dando no mesmo lugar. Melhor assim, também.
Seguir em frente. Só isso. Mal ouve o canto dos pássaros, o tum-tum dos passos ecoando nos ouvidos, marcando um ritmo que se encontra por si mesmo, com força, buscando afastar o frio no rosto e no corpo. A névoa deixa tudo meio irreal. Respirar fundo e expirar. Não precisar olhar para fora, abrir mão da métrica nos passos. Se iguais a outros ou não, que importa?
Uma volta e mais uma. A manhã se estende e o sol se aventura para fora das nuvens. A névoa se dissipa, repousando, úmida, nas árvores e na grama. O ar, não mais ferindo as narinas, parece um cobertor finíssimo, que a aquece, afastando a tensão, agora sim percebida. Tira o agasalho, sem parar de caminhar, reconhecendo o cheiro da grama e da terra secando ao sol, cheiro bom, que lhe dá conforto.
Lembra da infância, da época em que se morava em casas e tinha-se quintal, não playground de cimento e brinquedos de plástico. Lembra do cheiro de pão quente, fresco. As idas à padaria, com o pai, aos sábados à tarde. O perfume dos pães, das broas e dos bolos, recém saídos do forno, o gosto dos frios. A expectativa de que sábado chegasse, do seu sábado, quando caberia a ela, dentre os filhos, a vez de escolher o lanche da família. Esperar pelo sábado, pela festa de quinze anos da melhor amiga. Os planos, as providências, a expectativa. Aliás, pelo que lembra, a festa foi até boa, mas o melhor da festa foi mesmo esperar por ela.
Foi nesse dia que sentiu, pela primeira vez, ter borboletas na barriga. É como consegue definir. É isso que sente quando espera por alguma coisa boa acontecer - que tem borboletas voando dentro dela.
Tem, não. Tinha.
- Anseio, é isso.
Nem percebe que fala em voz alta. A palavra veio sem querer, pronunciada como um suspiro. Junto com ela, o aperto no peito:
- Naquela época, o que eu não conhecia era a palavra.
Leva um susto quando um gato, rajado em muitos tons de laranja, herdeiro multicor de não sei quantas raças, atravessa rapidamente o caminho. Num pulo preciso, sobe em uma pedra, junto a uma touceira florida. Parece determinado, buscando algo que ela não consegue ver.
Não resiste. Diminui os passos e para, um pouco afastada da pedra, testemunha curiosa do que vai acontecer.
O gato rasteja pela superfície escura, o olhar fixo num ponto adiante, o corpo tenso, em movimentos lentos.
Escondida na vegetação, amarela como as flores da touceira, está uma borboleta. Pousada na flor, agita as asas em movimentos quase imperceptíveis. Os movimentos do felino são assim também, milimétricos, como se tudo fosse um filme visto quadro a quadro. Mais perto, mais perto.
Um raio alaranjado atinge a planta e um amarelo se desprende dos outros, solto, no ar. O gato está imóvel, esculpido, por um momento, na pedra.
É isso. Acabou. Ela procura despojos da batalha, talvez restos, um corpo que possa prantear.
Então ela viu. Percebe que o amarelo no ar não era uma flor despedaçada. A borboleta, ainda viva, flutua, mais alto, impossível de ser tocada.
O gato pula da pedra e se afasta, como se nada tivesse acontecido. Olhando-o, surpreende-se com a expressão do felino, quase humana, de desapontamento e desdém.
Ela chora e ri. Esquecida do lugar, dos passantes, do medo de ser chamada de louca, ela ri, ri como não ria há muito tempo. Parada, ali, descobre que ainda há vida nas borboletas.

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sexta-feira, fevereiro 20, 2004

ESSA TAL DE LIBERDADE

Anouk , a dos neurônios brilhantemente funcionantes, além de cor de rosa, opina:

As opiniões podem e devem ser livres. Mas,... E as pessoas que dão as opinões? Livres são?



Livre não é fazer o que quiser.
Restritos são e devem ser os atos, sempre que eles tenham uma repercussão no outro.
A liberdade ampla geral e irrestrita é de sentir e pensar. Até a mais abjeta das sensações. De nada adianta a proibição de ter ou viver determinados sentimentos e emoções. Negá-los é desastre na certa. Como minha avó dizia: “quanto mais se aperta, mais escorre entre os dedos”. O que vou fazer com essas sensações é que vai resultar de uma escolha.
Liberdade tem a ver com esta possibilidade de fazer escolhas. Não tem a ver com moral. Tem a ver com ética.
Penso que é possível se sentir em liberdade, se ficar entendido que uma norma, regra ou lei, se consentida, não é uma restrição à liberdade. É um acordo entre a pessoa e seu semelhante, grupo ou crença.
Livre é aquele que se livra da onipotência.

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quinta-feira, fevereiro 19, 2004




"...mas de onde vem, então, esse gesto monstruoso?
- Da natureza, minha filha."

Marquês de Sade, Histoire de Juliette (1796)

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quarta-feira, fevereiro 18, 2004

O HOMEM INVISÍVEL

Encontro um pequeno trecho de um livro (vou ler, com certeza), falando sobre a importância do olhar, que me tocara no texto de Shakespeare, mas que trata do tema sob uma forma muito mais ampla do que em uma relação dual.
Respeito não é um direito. É uma necessidade. E só há respeito por uma coisa quando ela é reconhecida como existente. Reconheço o outro como um outro e o trato como meu igual.
Quando este pacto entre gentes é quebrado e as distinções de natureza, ideologia, fé, condição econômica, legitimam uma desigualdade, onde deveria haver apenas diferença.
Essa tragédia é tão ampla que abarca desde uma relação entre pais e filhos, entre amantes, até os horrores do extermínio na Bósnia, na Palestina ou acerca do trabalho escravo no interior do Brasil, ou qualquer outra forma de violência contra uma pessoa que retire dela seu valor de existência.


Em Ralph Ellison’s novel, Invisible Man:

"I am a man of substance, of flesh and bone, fiber and liquids --- and I might even be said to possess a mind. I am invisible, understand, simply because people refuse to see me ... When they approach me they only see my surroundings, themselves, or figments of their imagination --- indeed, everything and anything except me."


“Sou um homem de substância, de carne e osso, fibra e líquidos – e pode até se dizer que possuo uma mente. Eu sou invisível, compreenda, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver... Quando me abordam, somente vêem o que há em volta de mim, eles mesmos, ou vestígios de sua imaginação – na verdade, tudo e qualquer coisa exceto a mim.”


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terça-feira, fevereiro 17, 2004



Tenho, em mim, uma Nina irremediavelmente criança que adora jardim zoológico, andar na xícara maluca girando até ficar tonta, louca por pipoca, contos de fadas e desenhos animados.
Shrek é adorável. O filme e a música tema. A irreverência e a ironia fina com os clichês, a profunda humanidades dos personagens, os tornam irresistíveis.
O filme brinca com nossas fantasias idealizadas, nem excluindo-as, nem lhes dando estatuto de verdade, mas mostrando-as como são. Fantasias. Nós as temos, e é bom que ela existam, mas sem a compulsoriedade de se realizarem.
Quem nunca sonhou com o tal príncipe ou princesa encantados da infância?
Podem até ter uma roupagem moderninha, variar o figurino, mas da mais alta estirpe de qualquer jeito, destinados a garantir a existência do príncipe e da princesa escondidos em nós.
Estão lá, impecáveis, esperando uma invocação, ou, na linguagem das fadas, à espera de serem acordados de um sono profundo ou retirados de torres altas ou masmorras escuras.
Aspiramos ser príncipes sedutores, princesas encantadoras, merecedores um do outro, equalizados na perfeição. Se achamos que os sonhos têm obrigação de se realizar, teimamos em transformar ogros em príncipes, chamando de ogro todo aquele que não cabe ou não coube no nosso sonho.
Esquecidos que, de plebeus e ogros todos nós temos, ao menos, um pouco.


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segunda-feira, fevereiro 16, 2004

O olhar de Shakespeare

"Meus olhos, só pela visão dos seus,
Pingam de amor. O encanto se dissolve;
E como a aurora surpreende a noite
Derretendo o negror, os seus sentidos
Renascem e começam a banir
A névoa de ignorância que ora encobre
A razão clara. "

(A Tempestade, Ato 5, Cena 1)


Em 1611, Shakespeare escreve sua última peça- A Tempestade, uma de minhas obras prediletas.
Próspero, duque de Milão, banido de seu reino por seu irmão e opositores, é colocado num barco, sem remos ou rumo, à deriva, para morrer ‘a mingua. Ele e sua pequena filha sobrevivem, no entanto, chegando a uma ilha isolada e totalmente inabitada.
Apenas espíritos povoam a ilha, seus únicos companheiros daí em diante. Encontra Ariel, o espírito que representa o que há de melhor na natureza humana e também Caliban, o espírito bruto e incapaz de aprender e experienciar, voraz, ligado apenas a seus próprios instintos vorazes e descontrolados. Próspero dedica-se, por muitos anos, a controlar e manter sob suas ordens estes espíritos, encapsulado num mundo desumanizado, exceção feita à sua filha, a pequena Miranda, que trata de educar com esmero.
Muitos anos depois, um naufrágio traz à ilha seus opositores e a vingança se torna possível.O destino intervém e Miranda encontra os náufragos. Sem contato prévio com outros seres humanos, maravilha-se com este “admirável mundo novo” que se descortina diante dela, apaixonando-se por um homem do grupo.
Dentre os náufragos também está Gonzalo, homem justo e bondoso, que dera ao pai e à filha, às escondidas, provisões, roupas, livros, enfim, objetos que lhes permitiram sobreviver na ilha.
Sensibilizado pelo olhar amoroso de Gonzalo para com seu próximo e o de Miranda para com seu eleito,Próspero abre mão de sua vingança,da amargura e do ressentimento,reconciliando-se com sua humanidade, abdicando da magia e de viver na ilha solitária. Liberta os espíritos e retorna ao convívio dos homens.

O primeiro encontro entre duas pessoas se dá pelo olhar. Um olhar que humaniza, legitima e reconhece, que nos constituí como humanos e nos inclui numa relação, algo mais amplo que o nada ou tudo indiferenciado. É o olhar amoroso que suaviza e derrete o negror que nos coisifica ou destrói. O olhar que bane o desconhecimento de minha existência e da existência do outro, permitindo incluir-me e incluir este admirável mundo novo no meu mundo.
Shakespeare é demais!

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sexta-feira, fevereiro 13, 2004

Escrevi sobre o pedido de socorro e sai. Ao voltar, sumiram os comments. Todos. Misteriosamente.
Como tinha sido a Anouk, dos neurônios cor de rosa que colocara o Haloscan, fiquei quase doida, procurando a senha e a forma de entrar no site e recuperar os links.
Entrei no site, pedi uma nova senha, que até agora não chegou e, desanimada, voltei ao blog para lastimar-me, como uma carpideira siciliana.
Ao voltar ao blog, descubro que os comments voltaram! Tão misteriosamente quanto se foram.
Insondáveis mistérios do mundo bloguístico.


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quinta-feira, fevereiro 12, 2004

SOS


Tudo começou quando resolvi pedir socorro aqui, usando SOS como título.
Por curiosidade, usando o onipresente Google, lá fui eu pesquisar a origem do sinal, ver a historinha que embasava o famoso pedido para salvar nossas almas (e corpos, claro).
Surpresa!
SOS não é Save Our Souls!
Marina Vidigal, numa carta ao Professor Moreno, um site sobre língua portuguesa, explica que, ao contrário do que muita gente imagina, SOS não significa, "save our souls" (salvem nossas almas), nem "save our ship" (salvem nosso barco). Foi um sinal estabelecido numa convenção internacional em julho de 1908, pela facilidade de transmissão e recebimento em código Morse destas letras: SOS é representado por três pontos, seguido de três traços e novamente três pontos. Antes disso, os navios em perigo pediam socorro usando as iniciais CQD.
O Professor Moreno completa a informação, acrescentando que, na verdade, o sinal de SOS não representa nem iniciais nem mesmo letras.
Ele comenta: “Para não ser confundido com nenhuma outra seqüência de caracteres, o sinal deve ser transmitido numa seqüência ininterrupta, sem os espaços que o código Morse intercala entre as letras. Usando a convenção do Morse falado ("di" para ponto e "da" para traço), o sinal é di-di-di-da-da-da-di-di-di, e não di-di-di ... da-da-da ... di-di-di.
É uma pena; eu conhecia várias versões sobre a verdadeira frase oculta nas três iniciais, além de "save our souls": "save our ship" (salvem nosso navio); "stop all signals" (cessem todas as transmissões); "send out succor" (enviem socorro); agora, tudo fica reduzido a dis e das”.
Concordo com o professor. Salvem nossas almas é muito mais romântico.
De qualquer forma, cultura de almanaque é uma delícia.

Voltando ao pedido de socorro neste oceano internético.
Não é caso de naufrágio, mas de algumas avarias incômodas. Ei-las:
1- Há no blog o link de Escreva-me. Não há jeito de conseguir que ele funcione. Como posso torna-lo operante?

2- Pim Pam Pum me escreveu dizendo que não consegue escrever nos comentários. Alguém mais também não consegue? O problema é do template do blog ou da máquina dele?

3- Instalei um mostrador de on line e o danado aparece quebrado na face do blog. Já mexi pra lá e pra cá, dei espaços, mudei de lugar, nada! Como deixá-lo numa única linha?

4- Como poderia colocar um link onde a pessoa pudesse escolher as música a ser ouvida?

Quem puder me ajudar, agradecimentos profusos.




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quarta-feira, fevereiro 11, 2004

PARADOXO

Fomos criados capazes de perguntar sobre nós mesmos, mas incapazes de tolerar as respostas.

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DEVIA

Epitáfio (Titãs)

Devia ter amado mais, ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais e até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer
Queria ter aceitado as pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar

Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar



Quem de nós nunca leu um horóscopo ou ficou tentado a procurar um vidente, cartomante, jogar o I Ching, ler folhas de chá ou qualquer um dos milhares de métodos divinatórios existentes desde sempre?
Quem nunca se interrogou a cerca de seu destino e do destino de seus afetos?
Quem nunca desejou o poder da previsibilidade?
Pensamos que, se soubermos com antecedência o que vai acontecer, estamos protegendo nossa existência, supondo que o conhecimento do futuro irá impedir a dor, o sofrimento e o risco.
A proteção pode ser, é claro, fornecida pela lógica do pior – Se determino que nada vai acontecer, de que nada posso esperar, tenho o consolo de que, na pior das hipóteses, eu possa dizer: Viu, não falei?
É como se fosse mais fácil suportar uma resposta cruel e trágica, mas supostamente conhecida, do que o fato de que não somos capazes de saber todas as respostas. Como é difícil abrir mão do que, em verdade, nunca se possuiu!

O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído, dizem os Titãs.
Assim seja.

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terça-feira, fevereiro 10, 2004

EMÍLIA E O INCOGNOSCÍVEL

Volta e meia, cismo com uma palavra. Encanto-me, dessa vez, com incognoscível. Incognoscível tem cara quase dele mesmo. Algo que se mantém na sombra, obscuro, intrigante como o próprio som da palavra.
Há um livro de Monteiro Lobato chamado Emília No País Da Gramática.
Lá, as palavras tinham rosto, corpo e idade, temperamento. Guardei uma, em especial. Dona Cáspite, uma velhinha bem velhinha, que se apresentava com um ar de permanente surpresa estampado no rosto enrugado.
A imagem, adormecida num cantinho obscuro dentro de mim volta nítida e com ela, uma outra, a de uma certa boneca de pano, de olhos de retrós. Emília, a boneca espevitada, arteira e sem papas na língua, como eu queria ser.
Fiz minha avó materna fazer uma boneca de pano para mim, de uma meia de meu avô.
Eu a adorava e foi minha companheira e confidente por um bom tempo.
Nesse jogo entre palavras e imagens, eu achava que retrós fosse um botão especial, negro, como daquelas botinas do século passado. Avançava no devaneio e tinha certeza de que aqueles botões dos olhos de Emília haviam pertencido a uma bota de dona Benta, usada no seu casamento com o falecido avô, a mesma percebida numa foto sépia, imaginária, onde dona Benta apareceria como noiva, cabelos escuros e camafeu, ao lado de um homem, meio gordote para nossos padrões de hoje, com longos bigodes retorcidos e parafinados.
Ele de pé, ao seu lado, com a mão no ombro de sua noiva, ar solene contrastando com o olhar tímido e ansioso da jovem Benta.
Minha boneca de pano só me fez a falseta de não ser uma Galatéia tupiniquim. Nunca falou, nunca me levou ao reino das Águas Claras e nunca pude realmente encontrar ao vivo com os personagens que povoavam minha imaginação, deuses, semideuses, figuras míticas, heróis, princesas e monstros.
Até hoje me lembro do nome de algumas ninfas, aprendidas com Monteiro Lobato. Dríades, hamidríades...
Tentava identificar suas moradas nos pés de manga, sapoti, goiaba, romã, jabuticaba de meu quintal. Buscava atenta um movimento sutil, um farfalhar de folhas, que me indicasse a presença de uma pequena ninfa que fosse. Quase as via. Pressentia suas presenças, mas sempre elusivas, nunca se mostravam de todo. Mas elas estavam lá, com certeza. E um dia, eu as encontraria. Eu acreditava em ninfas e centauros e bonecas que falavam.

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segunda-feira, fevereiro 09, 2004

PRIVILÉGIO FEMININO

É um privilégio ser mulher.
Aprendemos, com nosso corpo, que sangrar não mata, necessariamente.
Pode, pelo contrário, ser sinal de que podemos frutificar.

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domingo, fevereiro 08, 2004

DEPOIS

helga butzer felleisen - After the storm


Depois das tormentas existe o depois da tormenta.
Bendito depois, que anuncia um início. Seja ele benfazejo ou não, ainda não sabemos.
Mas sabemos que aquela tormenta, ou tormento, aquele sim, passou.
A luz se insinua entre a sombra e o chumbo e cores suaves colorem os olhos, lembrando-os de sua existência. Nos reerguemos.
Ainda trêmulos, ainda latejantes, na delicadeza que qualquer retorno exige, caminhamos para um novo começo.


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sábado, fevereiro 07, 2004

Já tem música no blog!
Posso agora brincar de combinar imagens, sons e a palavra. Assim, nada mais adequado para esta primeira vez que ouvir a poesia multicor de Trem das Cores(Caetano Veloso).
Um sábado iridescente a todos.

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STILL GOT THE BLUES

Still Got The Blues
(Gary Moore)



Used to be so easy to give my heart away
But I found out the hard way
There's a price you have to pay
I found out that love was no friend of mine
I should have known time after time

So long, it was so long ago
But I've still got the blues for you

Used to be so easy to fall in love again
But I found out the hard way
It's a road that leads to pain
I found that love was more than just a game
You're playin' to win
But you lose just the same

So long, it was so long ago
But I've still got the blues for you

So many years since I've seen your face
Here in my heart, there's an empty space
Where you used to be

So long, it was so long ago
But I've still got the blues for you

Though the days come and go
There is one thing I know
I've still got the blues for you.


Sérgio, obrigado pela dica da "trilha sonora" e pelas muitas aulas de blues.

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quinta-feira, fevereiro 05, 2004

O DIA DA MARMOTA

Com algum atraso, (foi na segunda-feira) celebro o Dia da Marmota.


Estados Unidos, 02/02/2004 - A famosa marmota Punxsutawney Phil "viu" sua sombra e anunciou, durante o 118º Dia da Marmota, no estado da Pensilvânia, que haverá mais seis semanas de inverno.

Todos os anos, no dia 2 de fevereiro, na cidade de Punxsutawney em Pennsylvannia, acontece o Festival da Marmota (Groundhog). Ela hiberna durante todo o inverno, e nesse dia, ela acorda e sai da sua toca pela primeira vez. Há uma lenda que diz, que se a marmota sair e vir a sua sombra, ela volta para a toca e hiberna por mais 6 semanas, num inverno prolongado. Se ela não vê sua sombra, mantendo-se do lado de fora, isso é o sinal de que a primavera vem mais cedo.
Porquê o encanto sobre o Dia da Marmota, se moro no hemisfério Sul, se no Rio de Janeiro a única neve conhecida é do tipo que sai em sprays?
Por causa de um filme chamado aqui no Brasil de O Feitiço do Tempo, (Groundhog Day), com direção de Harold Ramis. Phil Connors (Bill Murray) é um apresentador de TV de metereologia, egocêntrico ao extremo, sem amigos, nem amores. Ele é enviado para Punxsutawney, para uma entrevista chatíssima e insignificante sobre o tal dia da Marmota. Devido a uma nevasca, pernoita na cidade, após um dia em que tudo dá errado. Misteriosamente, Phil passa a acordar todos os dias naquele mesmo dia, sem que mais ninguém, além dele, perceba essa situação.
Sem ser religioso ou professoral, como seria de se esperar de uma comédia americana, o filme fala sobre nossa relação com o tempo. Ele denuncia a existência de pequenas repetições cotidianas, aprisionantes, grilhões invisíveis no dia a dia, tornando-nos prisioneiros do tempo numa escala que é, a princípio, imperceptível e depois mais e mais exasperante.
O protagonista, num lugar estranho, entre estranhos na imensa maioria, vive uma espécie de vácuo e uma ausência de referentes concretos. Esse vácuo existencial é agravado conforme os dias são revividos, à exaustão.
Phil passa por toda uma gama de emoções. De uma atitude de divertimento irritadiço, a um sentimento de onipotência até o desespero total. Finalmente, diante da inevitabilidade da situação, ele aceita de que não pode mudar a realidade externa. Percebe, no entanto, de que pode, sim, mudar seu modo de lidar com esta realidade, modificando suas atitudes. Passa a agir diferentemente, descomprometido com os resultados imediatos de seus atos, não mais tratando o tempo como inimigo, mas como uma contingência inevitável, que passa a usar em seu favor. Dessa maneira, ele se liberta da prisão do sempre e do nunca. Aí, o feitiço se quebra.
A trama questiona, não só a capacidade transformadora do homem em relação à seu destino, como também exprime uma experiência temporal que não é acessível através das palavras. Uma vez, alguém me disse: “O tempo não gosta do que fazemos sem ele”. A urgência imediatista e o pensamento herdado da infância baseado no tudo ou nada nos fazem temer o devir, porque este explicita, cruamente, nossa incapacidade de predizer ou garantir o futuro. Por vezes, esquecemos de lembrar o que reza uma antiga oração judaica: “Bendito é o Deus que muda as horas!”
Já falei muito, pois blogs são para curtas leituras. É que o tempo e nossa relação com ele me fascinam. Quem quiser tricotar sobre o tema, bem vindo seja.

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quarta-feira, fevereiro 04, 2004

TERESA

À princípio, era um vulto. Vago, uma sombra, sem rosto definido, sem forma. Uma promessa de presença, ela diria... Depois, não. Depois, a névoa se dissipou e ela pode reconhecer sua face entre outras, adivinhar a silhueta, perceber uma identidade.

Roberto.

Roberto que, aos poucos, lhe deu vida e corpo. Roberto que lhe mostrou o que era desejo e prazer.

Roberto, que a descobriu adormecida entre panelas, filhos e casa. Roberto, que preenchia seus dias, criava seus sonhos, invadia sua cama.
Com ele, torceu-se entre lençóis e com eles fez sua fuga de uma vida sem dor e sem cor. É prisão, Teresa, ele dizia, vem comigo, vem sem medo.

Teresa hesitava e temia e tremia. Uma vez tinha visto abrirem a gaiola de um porquinho da índia, mesclado de branco e chocolate. Nunca tinha esquecido a reação do bichinho diante da liberdade inesperada. A porta aberta, ao invés de convidar ao mundo, o fizera recuar e ficar no fundo, tremendo por inteiro, tremendo como ela tremia agora, gritando silenciosamente: Não posso, não posso.

Teresa não sabia o que acontecia. Roberto surgia sempre de repente, sem aviso. Ele a tomava em seus braços e a arrebatava para si. Não se pertencia. Pertencia a ele, dono legítimo da mulher que criara.

Por longos períodos, Roberto sumia. Roberto voltava. E de novo sumia, sem aviso ou notificação. Como se não existisse, como se nunca tivesse existido. Teresa não entendia e se desvanecia, pairando no éter, de novo adormecida.

Assim passa a vida de Teresa.

Teresa não sabe que a vida que tem é a vida que vem da memória da vida que Roberto não viveu.

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terça-feira, fevereiro 03, 2004

NÃO MAIS JUNTOS

O post deCarlos, de 02/02, foi sobre quando o amor acaba.
Texto lindo, que me levou a colocar aqui algo escrito há muito tempo, mas guardado à sete chaves, uma daquelas histórias secretas de que falei ontem, que precisam ser escritas para serem exorcizadas.



Nossos passos se enroscam e tropeçam,
tornando o caminhar
um esforço gigantesco
que maltrata e muito.
Não quero mais a mesmas coisas que antes.
Não quero mais me calar e ocultar o que
Eu penso, eu sinto, eu quero.
Eu banco mas eu morro de medo.
Não quero mais fazer a troca perversa
do som raivoso, que seja, pelo silêncio mortal.
Quero poder querer o que você não quer.
Ou não querer o que quer.
Quero que a minha vontade seja distinta
Da sua.
Um dia foi a nossa.
Hoje, não mais.
Lembro e me arrepia,
recordar estes momentos recentes
que se arrastavam pesados.
A paralisia e o sufocar
daquele calar permanente.
Mortos de medo.
Mortos de raiva.
Mortos de dor.
Onde nos matávamos
a cada momento
para manter,
inútil sacrifício,
como vivo, um casamento.
Que não é feito de corpos.
Ou de apenas o nosso querer.
Mas é um pacto entre gentes.
Um casamento não é a fusão de dois em um.
Mas o delicado equilíbrio de dois
criarem um três, que é um, sem deixar de ser dois.
Nos atrapalhamos nesta complexa matemática.
Perdemos o passo e o compasso
para realizar esta geometria.
Nos perdemos e não mais fazemos
o desenho, tão lindo, que um dia nós traçamos .
Juntos.
Sinto a culpa de ter tropeçado
quando, buscando o meu passo,
provoco este descompasso
que nos joga pro espaço,
desfazendo nosso laço.
Mas fica sem sentido
deixar de ser, para manter
o que já não é mais.
Queria poder preservar da mágoa,
da dor, da raiva e do ressentimento,
tudo que criamos nestes anos.
Não matemos o sentimento
que nos permitiu criar
lindos desenhos, magníficas pinturas.
Não perdemos nossas obras.
Apenas a habilidade de fazê-las,
juntos.(09/05/99)

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segunda-feira, fevereiro 02, 2004


“Há histórias de todas as espécies. Algumas nascem ao ser contadas; sua substância é a linguagem e, antes que alguém as ponha em palavras, são apenas uma emoção, um capricho da mente, uma imagem ou uma reminiscência intangível. Outras chegam completas, como maçãs, e podem repetir-se até o infinito sem risco de ter seu sentido alterado.(...)

E há histórias secretas que permanecem ocultas nas sombras da memória.(...)
Por vezes, para exorcizar os demônios de uma recordação, é necessário contá-la como um conto.” ( Isabel Allende - Contos de Eva Luna)

Era uma vez...

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