Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

segunda-feira, maio 30, 2005

ELEFANTES

Tadeu nunca achou estranho morar com os pais e o elefante. Estranhos eram o pai e a mãe. Cada um de um jeito, mas definitivamente estranhos.
A mãe era clara e quente, sufocante mesmo. Tadeu a via se afligir com qualquer coisinha, lendo livros, procurando médicos, comparando opiniões, cheia de cuidados, cerceando-o com recomendações. Tadeu não entendia. Só sabia que aquilo o incomodava tanto quanto a pata do elefante que cismava em pousar no seu peito, quase sempre.
O elefante adorava os medos da mãe. Bastava ela começar a falar que o elefante vinha ouvir, aboletado nele. Tadeu ficava imaginando que morrer de todas aquelas doenças ao menos o livraria do elefante gordão sentado nele. Noutro dia a mãe o mandara por nada, dormir de dia. Precisava repousar, parecia doente. Doente nada. Cansado do paquiderme e das doenças respondera na hora:
- Quem está cansado, não estou cansado. Se está cansada, descansa você, mãe.
Ficara por dois dias sem ver desenho na TV, de castigo no quarto. Ele e o chato do elefante.
A lista de nãos da mãe parecia encher o mundo.
-Não brinque na chuva, não tire a camisa, não ande descalço, não coma chiclete, onde já se viu, menino, não fale nome feio.
-Bunda pode, mãe. Não está na lista do não, não pode falar é cu nem merda.
-Mas que boca suja, aprendeu isso na escola? Por isso não deixo brincar com esses meninos na rua.
-Não amole seu pai, está cansado.
-Jurandir, olha o menino, dê um pouco de atenção, o menino precisa.
O elefante se espalhava, amassando-o inteiro. Não amolar o pai? Como, se tudo o que fazia parecia incomodá-lo? Um gesto descuidado era motivo para ser repreendido, mandado embora para dormir ou brincar no quarto. Se a mãe era clara, quase demais, sujeitando-o a uma afeição abrasadora, Jurandir pertencia à frialdade das sombras e ao escuro do quase inexistente.
Pensar no pai fazia o elefante vir, célere, aboletar-se entre os ombros do menino, sufocando-o. Tadeu afugentava o paquiderme, correndo, pulando, mexendo em tudo, subindo nos móveis, qualquer coisa que tirasse o bicho de cima. Quanto mais corria, mais ouvia:
-Vai para o quarto, Tadeu.
O elefante pulava de novo sobre Tadeu.
Tadeu ia, os pés arrastando no chão, a bagunça da sala escorrendo para dentro, o elefante cinzento e gigantesco sobre ele.
Essa criança está com um problema, afligia-se Dona Marta. Será de cabeça, pensava alto, será herança dos pais, pensava baixinho a mãe de Tadeu. Ela é a mãe, sim, mãe não é a que cria e que cuida? E se a mãe que gerou, sabe tão pouco, morreu de parto, tinha algum problema genético, ou foi no parto, e eu não sei? E o pai, quem foi, sei tão pouco, bebia, usava droga, tinha doença no sangue? E se pedirem exames? E se eu precisar contar?
Marta estivera casada por anos, sem engravidar, quase quarenta, tentara tudo, queria um bebê, seu bebê, queria vê-lo crescer, receber os beijos e carinhos que sonhara, escassos desde muito. Jurandir era bom marido, não podia se queixar, respeitoso, atencioso nos deveres de chefe da casa. Mas era distante, cada vez mais fechado. Marta queria desejo, respeito era pouco, tanto amor desperdiçado.
Um dia, foi a Providência Divina, Marta tinha certeza, a cunhada comentara a morte de uma vizinha da mãe, eclâmpsia, moça nova, coitadinha, o bebê sem pai, a família humilde, o que será da criança. Ela não pensara duas vezes, é minha. Foi lá, e buscou o bebê que São Judas lhe dera, pelas novenas rezadas. Foi no impulso, acreditando trazer alegria para os dois, um elo a unir a aliança frágil, um filho para herdar o nome do pai.
A reação do marido foi um choque para ela, pálido e imóvel diante do drama contado. Não tinha ele bom coração? Não aceitara, já, a idéia da adoção? Não via que o santo lhes dera o milagre pedido? Jurandir parecera a ponto de explodir, negar, expulsar os dois de casa, mulher e bebê. Meu São Judas, rezara, fazei com que ele permita, não me tire a graça concedida.
O protetor das causas impossíveis fizera mais um milagre. Jurandir calara o quase dito, apenas dissera faça o que achar melhor. Ela fez. Registrou e batizou o milagre com o nome do santo. Criou e cuidou com amor feroz, indiferente à indiferença do marido. Não entendia aquele homem. Não tratava mal, não era disso. No entanto, nunca vira um gesto de carinho que não fosse obrigado e contrafeito. Ela falava, pedia, amor de pai faz falta. Nada.Ela amaria por dois, jurara. Pegava-o olhando o menino, por vezes, imerso em si, num jeito estranho. Devia gostar, não queria é dar o braço a torcer, deve ser isso, Marta pensava. Não sei o que se passa na cabeça desse homem, mas meu filho fica, murmurava, rebelde. Marta nem notava o gesto inconsciente, quase costumeiro, de esfregar o colo com a mão a tentar afastar o peso dele.
Jurandir percebia, é claro, o olhar intrigado da mulher, seu incômodo. Reconhecia a aflição de Tadeu. Identificava os sinais de sua própria angústia, o suor frio que lhe arrepiava a nuca acompanhado de uma onda gigantesca de náusea. Será que ela desconfia, perguntava-se. Depois de tantos anos, tem horas que acho que vou explodir, estourar, confessar, Jurandir pensava.
De todas as coincidências possíveis, o impossível. Cristina, moça nova, brejeira, trabalhando na expedição, indo e vindo com aquelas pernas morenas, as trancinhas no cabelo, ele num casamento sólido, sem ardor e sem desejo, exaurido das técnicas e tentativas de fertilização, o termômetro, o coito programado, monitorado, o choro depois da decepção mensal, reprodutor ou homem, indagara-se tantas vezes. As pernas de Cris e a monotonia. A gravidez, ironia máxima.
A angústia dos meses passando, a barriga crescendo, o medo aumentando, o que fazer, meu Deus. A morte no parto trouxera horror, culpa e o alívio. Ninguém o conhecia, pareciam não saber o nome do pai. Cris esperara que a situação se resolvesse com o nascimento da criança. Morrera e a situação se resolvera. Tinha pensado, no pânico e na confusão imediatos, mandar um dinheiro bom para a família dela, pagar as contas, arranjar um jeito de prover sem aparecer.
No meio de tudo, a mão do acaso, a mulher do cunhado, a ousadia da própria mulher na ânsia de filhos. Calara. O segredo o paralisara, impedindo-o de qualquer gesto de amor, sufocando qualquer emoção que o denunciasse. O peito doía-lhe quase o tempo todo.
Elefantes, indiferentes uns aos outros, passeiam pela casa de Tadeu.

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segunda-feira, maio 23, 2005

Há uma oração judaica que começa assim:

“Bendito é o Deus que muda as horas!”



Orações sempre são sábias.

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quarta-feira, maio 11, 2005

CORPO

Tiro o mundo que há em mim.
Para o chão, os fatos que me vestem.
Mulher desnuda
anseia
por disfarces.
Constrangida,
fito a imagem esquiva,
há bom tempo
relegada.
Abaixo a veleidade.
Estranha,
hei de te encarar,
suportar o escrutínio
prestar-te contas adiadas.

Apontas meu pai e minha mãe,
em ângulos, vislumbrados.
O rosto e as mãos do amante,
na lembrança, reencontrados.
Mas, não. Hoje, não.
Mesmo que tudo
pareça convergir ao chão,
hoje, não.
Falar deles é fugir de ti,
estranha,
mesmo que te tenham dado,
uns e outro, a
vida e posse deste corpo.
Hoje, somos nós.
Hei de te encarar,
suportar o escrutínio,
prestar-te contas
adiadas.

Espelhas, implacável,
marcas no rosto
sulcos mais fundos
pele cansada
uma leve papada.
Colo ainda belo,
Orgulho e alívio.
Seios pesados,
mamados e amados.
Na cintura, os excessos
da mesa e do ócio.
Estreitos
rios
serpenteiam
brancamente
o quadril.
O ventre arredondado,
corpo de matrona,
barroca demais,
nos dias de hoje.
O sexo,
mais sábio que o resto do corpo
encontra no tempo
prazer e gozo.
As pernas,
foco eterno de repulsa e birra,
sustentam, olímpicas,
a primazia do desgosto.

A estranha,
cujo corpo envelhece
fenece e morre,
me encara.
Não há contas a prestar.
Estamos quites.
Mesmo que tudo
pareça convergir ao chão,
e aquém,
quem sabe além,
mergulho no espelho
e encontro
a estranha que me sou
também.

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