Clube das Almas Inquietas

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quarta-feira, novembro 21, 2012

ODIAR É A PIOR MANEIRA DE AMAR

Achei este texto, perdido entre muitos, escrito há muito muito tempo.
Sem saudades do ódio, mas cheia de saudades deste blog. Saudades de escrever. 


O que eu mais odeio nele é sua capacidade de despertar o meu ódio. Odeio a queimação do rancor subindo e descendo pela garganta e odeio ter de me conter em não desejar, com toda minha força, que as piores baixezas lhe aconteçam. Odeio aquele que me desiludiu de meu grande projeto de pessoa bacana, de minha fantasia galahadiana de ter um coração bom e puro.


Odeio descobrir que não sou uma pessoa boa. Sinto-me ressentida e rancorosa e sem coragem para sê-lo abertamente. Descobri meu talento para o ódio e a maldade e minha covardia em ser desbragadamente vil. Patino nas pequenas mesquinharias, nas agulhadas, aqueles mesmos gestos que sempre desprezei ao encontrá-lo em outros. Odeio a vontade urgente de proclamar segredos confiados, odeio o desejo de trair e odeio não conseguir fazê-lo. Odeio a onda de culpa que me invade por odiar e odeio o impulso que me leva a rezar para tirar estes pensamentos da cabeça, por desejo e medo que eles se realizem e odeio, mais que tudo, ser obrigada a me confrontar com alguém que sempre evitei ser.

Definitivamente não sou uma boa moça, embora até possa ser uma moça boa – às vezes. Odiar me despertou para outras covardias e me libertou de algumas. Libertei-me, sem querer e sem vontade, verdade seja dita, de um tanto de masoquismo travestido em bom mocismo. O lema: “Deixe que te maltratem, silencia. Fica indignada, mas digna. Tua raiva é santa e o castigo virá não de ti, mas da justiça divina.” não me cabe de nenhum modo mais. Deus deve estar exausto de travar minhas batalhas e bem cansado do encargo de proteger-me, e até vingar-se, por mim.

Libertei-me de parte do medo do ostracismo, do repúdio, do abandono e do isolamento, ao menos para reconhecê-lo como terror de fato, o horror à letra escarlate e ao fantasma do judeu errante.

A raiva violenta, onda de fel que sobe das entranhas e que queima e arde por onde se espalha, essa eu revivi depois de anos de sepultamento e disfarce. Percebo hoje que não foi apenas a possibilidade de odiar francamente que ficou silente tantos anos. Muito da minha coragem se perdeu, muito da criatividade, da possibilidade de ser uma tradutora mais fiel de mim naquilo que faço e produzo. Como ser escritora se não quero mostrar-me mal, se temo expor as chagas, as manchas e os excrementos, se me apavora defrontar-me com a sujeira inevitável que os vivos produzem? Como ser-me por inteiro se edito o que sinto e o que sou? Agora sei que não sou só coisa alguma e é por sabê-lo que posso ser cada coisa também. È muito assustador e é por isso que preciso escrever, contar, exorcizar os demônios e tentar ser-me, quem sabe, mais que minhas partes.

Lembro-me de minha avó, contando sobre meu pai, ensinando-lhe, ela me disse, que nunca deveria mencionar fezes ou defecar, mas instruindo o menino a dizer: vou fazer rosas. Pobre menino que tinha por dever transmutar fedor em perfume. Quanto a mim, imagem viva dele, encarreguei-me do legado impossível. Tenho vontade hoje de dizer á minha avó, que finalmente desisti de fazer rosas desse jeito, como meu pai também desistiu. Quero usar minhas fezes para adubar as rosas que eu possa plantar.

Dois dias depois.

Bendita escrita que me renova e me transmuta. Como disse Isabel Allende, para exorcizar alguns demônios é preciso conta-los como um conto. Nem isso, um testemunho basta.

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