MISERICÓRDIA
Annam sentia-se incrivelmente cansado quando afastou o tabuleiro de xadrez à sua frente e foi preparar o chá vespertino. O clima quente e úmido de Malacca não ajudava em nada a melhorar sua dispnéia, companheira de uma insuficiência cardíaca antiga. Acocorou-se diante do fogo, pondo a água para ferver no velho bule de alumínio. Buscava a caixa do chá na mesa próxima quando ouviu distintamente:
-Misericórdia!
Com o braço e a respiração em suspenso, o homem buscou o vivente que adentrara sem notícia.
Misericórdia ele exclamou também, ao perceber que a palavra não vinha de vivente nenhum, pelo menos, não no sentido que vivente sempre tivera para ele. Mais forte do que parecia, o coração de Annam, sobreviveu ao choque de perceber que a voz viera do bico enegrecido do bule ao fogo. Olhando o utensílio gasto e cheio de mossas, revelando-se sem aviso ou preparo, teve a certeza de que, o que quer que lhe fosse pedido, não lhe seria possível recusar.
Os vizinhos, os primeiros a perceber a mudança espantosa no idoso, não tardaram a buscar também alívio e conforto no vapor e nas folhas de chá.
Annam recebia a todos, envolto em nuvens nascidas do bico fumegante, orientava os aflitos em suas dores, por vezes enfático, outras vezes hesitante, atento aos sibilos que emergiam do vasilhame. Ao final da cerimônia, distribuía pequenas quantidades do líquido retirado do bule a serem ingeridas em horas contadas.
Em pouco, a casa não mais comportava o afluxo de pessoas buscando misericórdia. Filas se formaram diante da casa pobre e humilde, exigindo a construção imediata de um templo em terreno próximo.
Encimando a construção, um bule gigantesco sobressaia no telhado. Imenso, esmaltado em cores claras, espalhou espanto e interesse pela cidade inteira. Os crédulos de origem cristã diziam que o bule era a encarnação de um antigo jesuíta português, queimado vivo no velho forte durante a invasão holandesa. Aqueles de origem muçulmana falavam de um emissário do profeta revelado na fumaça enquanto os budistas viam com serenidade o objeto, mais uma das formas evidentes de Buda.
Não levou muito tempo para que a inquietude tomasse conta da região, a estranheza ao objeto do culto sobrepujando a curiosidade inicial. Murmúrios sobre fanáticos, seitas demoníacas passaram a ser ouvidos nos mercados, nas praças e lugares de oração.
Da estranheza ao temor, um passo. Do temor ao ódio, o alcance de um braço.
Autoridades da Malásia prenderam nesta quarta-feira 58 seguidores de uma seita bizarra que cultuava um bule de chá gigante, dois dias depois de a sede do grupo ter sido misteriosamente incendiada.
A agência oficial de notícias disse que os presos tinham idade entre 20 e 60 anos. A seita, que acredita que o bule tem propriedades curativas, funcionava no nordeste da Malásia, área de forte presença muçulmana. Autoridades religiosas tornaram ilegal a seita do bule argumentando que esta era fora dos padrões.
-Misericórdia!
Com o braço e a respiração em suspenso, o homem buscou o vivente que adentrara sem notícia.
Misericórdia ele exclamou também, ao perceber que a palavra não vinha de vivente nenhum, pelo menos, não no sentido que vivente sempre tivera para ele. Mais forte do que parecia, o coração de Annam, sobreviveu ao choque de perceber que a voz viera do bico enegrecido do bule ao fogo. Olhando o utensílio gasto e cheio de mossas, revelando-se sem aviso ou preparo, teve a certeza de que, o que quer que lhe fosse pedido, não lhe seria possível recusar.
Os vizinhos, os primeiros a perceber a mudança espantosa no idoso, não tardaram a buscar também alívio e conforto no vapor e nas folhas de chá.
Annam recebia a todos, envolto em nuvens nascidas do bico fumegante, orientava os aflitos em suas dores, por vezes enfático, outras vezes hesitante, atento aos sibilos que emergiam do vasilhame. Ao final da cerimônia, distribuía pequenas quantidades do líquido retirado do bule a serem ingeridas em horas contadas.
Em pouco, a casa não mais comportava o afluxo de pessoas buscando misericórdia. Filas se formaram diante da casa pobre e humilde, exigindo a construção imediata de um templo em terreno próximo.
Encimando a construção, um bule gigantesco sobressaia no telhado. Imenso, esmaltado em cores claras, espalhou espanto e interesse pela cidade inteira. Os crédulos de origem cristã diziam que o bule era a encarnação de um antigo jesuíta português, queimado vivo no velho forte durante a invasão holandesa. Aqueles de origem muçulmana falavam de um emissário do profeta revelado na fumaça enquanto os budistas viam com serenidade o objeto, mais uma das formas evidentes de Buda.
Não levou muito tempo para que a inquietude tomasse conta da região, a estranheza ao objeto do culto sobrepujando a curiosidade inicial. Murmúrios sobre fanáticos, seitas demoníacas passaram a ser ouvidos nos mercados, nas praças e lugares de oração.
Da estranheza ao temor, um passo. Do temor ao ódio, o alcance de um braço.
Autoridades da Malásia prenderam nesta quarta-feira 58 seguidores de uma seita bizarra que cultuava um bule de chá gigante, dois dias depois de a sede do grupo ter sido misteriosamente incendiada.
A agência oficial de notícias disse que os presos tinham idade entre 20 e 60 anos. A seita, que acredita que o bule tem propriedades curativas, funcionava no nordeste da Malásia, área de forte presença muçulmana. Autoridades religiosas tornaram ilegal a seita do bule argumentando que esta era fora dos padrões.