BEGE
Chega no café da livraria, apressada. A amiga aguarda, paciente, que ela se acomode, respiração se normalize, que os volumes sejam devidamente acomodados na cadeira vaga e o pedido de um expresso e um pãozinho de queijo estabeleçam a intimidade que a urgência do semblante exige.
-Não agüento mais a cidade, a idade, os desencontros e as faltas de encontro no amor.
-Alguém em especial?
-Sim, de mim, em especial. Não consigo compreender o tamanho da encrenca que você arranja quando procura se relacionar com alguém hoje em dia.
- Está bem difícil, eu sei. E, me parece, não ser algo ligado a uma faixa etária. Jovens, mais velhas, a queixa é a mesma.
- Juro para você, acabei de descobrir uma vantagem nisso tudo. Posso enriquecer com um talento pessoal encoberto e desperdiçado até agora. Vou colocar um anúncio nos jornais locais, internacionais, na internet, dirigido à todas as organizações antiterroristas e serviços secretos existentes. Ao me descobrirem, farão um leilão para me contratar. Vou estar sozinha, mas rica, mi-li-o-ná-ri-a!
- Ah. A senhora pode me dizer que talento não reconhecido é este?
- Ser especialista em homens- bomba. Atraio um a quilômetros de distância. Nesses dias de paranóia e loucura do mundo, torres gêmeas, trens com bombas, atentados, seqüestros, vou cobrar em euros, libras.Dólar, nem pensar. Especialista em homens –bomba oferece seus serviços de detecção.
- Doida. Acabei de ler a biografia da Billie Holiday. Você tem uma nobre antecessora, ao que parece. Encontrou os tipos mais terríveis, uma expert. Um a viciou em heroína, levou surra de vários, o último tirou o dinheiro que restava embaixo do colchão, ela morrendo, não vai acreditar.
- Billie foi hors-concours, não dá para comparar. Não gosto de apanhar, não vejo graça em droga e não tenho a menor intenção de oferecer dinheiro para comprar amor sincero. Mais vale oferecer meus préstimos a uma entidade internacional antiterrorista. Só tenho que pensar na questão ética, hum, deixa ver, com quem aceitaria trabalhar? Honorários, seguro-saúde, apólice de vida, tudo incluido, claro.
- Variou de vez. Bem, humor é uma solução intermediária, uma loucura criativa, controlada.
-Sublimação, meu bem. Aliás, estou me lembrando de um filme...
-Love Story? Romeu e Julieta? Titanic não, por favor, enjôo em navio.
-Não, nem tanto. É uma comédia leve, mas bem interessante sobre relacionamentos na meia idade. Sabe o que a protagonista cinquentona fala para o mocinho sessentão que a esnoba? “Homens adoram mulheres comuns. Eu não sou comum”.
Quando ouvi, pensei: ponto para o roteirista. O roteirista ou a roteirista, pois se for um homem é um como o Chico Buarque, de alma feminina. No filme, no final da história, eles acabam juntos. Mas isso é cinema. Descontando o final hollywoodiano, deu para perceber uma coisinha e outra. Talvez, você tenha, eu tenho, muitas de nós tenhamos esse tipo de problema: não sermos comuns. Você, por exemplo, não é comum.
-Como não sou comum? Sou o quê, um extraterrestre?
-Lindinha, comum você não é. Claro que não. Bonita, inteligente e auto sustentável? Aceite o fato. Você pode até ser muito admirada, mas vai ser bem mais difícil ser cortejada. É essencial para um bom relacionamento interpessoal que você seja absolutamente comum. Não falam que a sabedoria oriental preconiza o caminho do meio? Então? Seja comum. De preferência, medíocre. Percebi que é fundamental ser medíocre.
-Louca.
-Louca nada. Apenas uma observadora das relações entre homens e mulheres do novo milênio iluminada por uma santa roteirista de Hollywood, mulher brilhante! Se não resolveu o enigma, deu uma dica crucial.De alguma forma, as relações humanas vivem sob o fantasma do controle. Tem-se medo de ser controlado e portanto, controlar é o meio mais seguro de não ser controlado, entendeu?
-Isso é capuccino ou Irish coffee?
-Isso é pensar. Nada a ver com álcool. Estamos entre mulheres. Pense, aqui é permitido. Uma mulher que não é comum é mais difícil de manter sob controle, em especial se não acolher uma relação de dependência com seu parceiro. Por outro lado, uma mulher totalmente comum não terá valor num contexto social como o nosso, a a aparência é uma prioridade. Pense no caminho do meio. Quer coisa mais mediana que meio?
Nem acima, nem abaixo, no meio. É assim que tem de ser. De preferência, usando bege, uma roupinha na moda, nada original, umas griffezinhas espalhadas, cabelinho bacana, botox na testa, gordura da bunda na boca e a mesmice da mesma face de lagartos plastificados. Não use nada extravagantemente pessoal. Ser medianamente inteligente é permitido, só não pode ser original, não invente de ter opinião própria, faça-me o favor.
Será apreciada no seu trabalho, na reunião de condomínio, nos amores e na academia de ginástica. Pense em si mesma em suaves tons de bege. Aliás, seja bege. Bege é a cor perfeita da mediocridade. Não, você não precisa ser medíocre. Só pareça ser.
- Não tem um conto de Machado de Assis que...?
-Tem sim, ele é um gênio, um muso inspirador, mas omita o comentário. Você não está sendo bege. Machado de Assis não é bege e discutir os contos dele também não, a não ser que você esteja na FLIP ou tomando um café aqui na livraria. Mesmo assim, até para ser inteligente e culta você tem de contextualizar. Num grupo de intelectuais, lembre, associe, mas selecione a originalidade do comentário. Seja mediana em tudo, até na cultura. Você vai me agradecer.
-Sim, mestre!
- Gafanhota, um último detalhe, não se apaixone. Bege não é para apaixonados. Paixão é demasiadamente pessoal, descabela a escova de chocolate, deixa o nariz vermelho ao chorar, provoca suor e amarfanha a roupa. Paixão entranha na carne e desfaz o plástico da plástica.
- Filosofia às seis da tarde.
-Realismo às seis da tarde. Bem, daqui a pouco começa um curso de vinho aqui perto, vamos?
-Eu não gosto de vinho.
-Quem disse que precisa gostar? Não ouviu nada do que eu disse? Aprenda uns nomes, cheire a rolha e uns detalhezinhos para evitar gafes. Aparente que conhece, já basta.
Estou convidada para o café hoje? A inscrição do curso me deixou quebrada.
-Não agüento mais a cidade, a idade, os desencontros e as faltas de encontro no amor.
-Alguém em especial?
-Sim, de mim, em especial. Não consigo compreender o tamanho da encrenca que você arranja quando procura se relacionar com alguém hoje em dia.
- Está bem difícil, eu sei. E, me parece, não ser algo ligado a uma faixa etária. Jovens, mais velhas, a queixa é a mesma.
- Juro para você, acabei de descobrir uma vantagem nisso tudo. Posso enriquecer com um talento pessoal encoberto e desperdiçado até agora. Vou colocar um anúncio nos jornais locais, internacionais, na internet, dirigido à todas as organizações antiterroristas e serviços secretos existentes. Ao me descobrirem, farão um leilão para me contratar. Vou estar sozinha, mas rica, mi-li-o-ná-ri-a!
- Ah. A senhora pode me dizer que talento não reconhecido é este?
- Ser especialista em homens- bomba. Atraio um a quilômetros de distância. Nesses dias de paranóia e loucura do mundo, torres gêmeas, trens com bombas, atentados, seqüestros, vou cobrar em euros, libras.Dólar, nem pensar. Especialista em homens –bomba oferece seus serviços de detecção.
- Doida. Acabei de ler a biografia da Billie Holiday. Você tem uma nobre antecessora, ao que parece. Encontrou os tipos mais terríveis, uma expert. Um a viciou em heroína, levou surra de vários, o último tirou o dinheiro que restava embaixo do colchão, ela morrendo, não vai acreditar.
- Billie foi hors-concours, não dá para comparar. Não gosto de apanhar, não vejo graça em droga e não tenho a menor intenção de oferecer dinheiro para comprar amor sincero. Mais vale oferecer meus préstimos a uma entidade internacional antiterrorista. Só tenho que pensar na questão ética, hum, deixa ver, com quem aceitaria trabalhar? Honorários, seguro-saúde, apólice de vida, tudo incluido, claro.
- Variou de vez. Bem, humor é uma solução intermediária, uma loucura criativa, controlada.
-Sublimação, meu bem. Aliás, estou me lembrando de um filme...
-Love Story? Romeu e Julieta? Titanic não, por favor, enjôo em navio.
-Não, nem tanto. É uma comédia leve, mas bem interessante sobre relacionamentos na meia idade. Sabe o que a protagonista cinquentona fala para o mocinho sessentão que a esnoba? “Homens adoram mulheres comuns. Eu não sou comum”.
Quando ouvi, pensei: ponto para o roteirista. O roteirista ou a roteirista, pois se for um homem é um como o Chico Buarque, de alma feminina. No filme, no final da história, eles acabam juntos. Mas isso é cinema. Descontando o final hollywoodiano, deu para perceber uma coisinha e outra. Talvez, você tenha, eu tenho, muitas de nós tenhamos esse tipo de problema: não sermos comuns. Você, por exemplo, não é comum.
-Como não sou comum? Sou o quê, um extraterrestre?
-Lindinha, comum você não é. Claro que não. Bonita, inteligente e auto sustentável? Aceite o fato. Você pode até ser muito admirada, mas vai ser bem mais difícil ser cortejada. É essencial para um bom relacionamento interpessoal que você seja absolutamente comum. Não falam que a sabedoria oriental preconiza o caminho do meio? Então? Seja comum. De preferência, medíocre. Percebi que é fundamental ser medíocre.
-Louca.
-Louca nada. Apenas uma observadora das relações entre homens e mulheres do novo milênio iluminada por uma santa roteirista de Hollywood, mulher brilhante! Se não resolveu o enigma, deu uma dica crucial.De alguma forma, as relações humanas vivem sob o fantasma do controle. Tem-se medo de ser controlado e portanto, controlar é o meio mais seguro de não ser controlado, entendeu?
-Isso é capuccino ou Irish coffee?
-Isso é pensar. Nada a ver com álcool. Estamos entre mulheres. Pense, aqui é permitido. Uma mulher que não é comum é mais difícil de manter sob controle, em especial se não acolher uma relação de dependência com seu parceiro. Por outro lado, uma mulher totalmente comum não terá valor num contexto social como o nosso, a a aparência é uma prioridade. Pense no caminho do meio. Quer coisa mais mediana que meio?
Nem acima, nem abaixo, no meio. É assim que tem de ser. De preferência, usando bege, uma roupinha na moda, nada original, umas griffezinhas espalhadas, cabelinho bacana, botox na testa, gordura da bunda na boca e a mesmice da mesma face de lagartos plastificados. Não use nada extravagantemente pessoal. Ser medianamente inteligente é permitido, só não pode ser original, não invente de ter opinião própria, faça-me o favor.
Será apreciada no seu trabalho, na reunião de condomínio, nos amores e na academia de ginástica. Pense em si mesma em suaves tons de bege. Aliás, seja bege. Bege é a cor perfeita da mediocridade. Não, você não precisa ser medíocre. Só pareça ser.
- Não tem um conto de Machado de Assis que...?
-Tem sim, ele é um gênio, um muso inspirador, mas omita o comentário. Você não está sendo bege. Machado de Assis não é bege e discutir os contos dele também não, a não ser que você esteja na FLIP ou tomando um café aqui na livraria. Mesmo assim, até para ser inteligente e culta você tem de contextualizar. Num grupo de intelectuais, lembre, associe, mas selecione a originalidade do comentário. Seja mediana em tudo, até na cultura. Você vai me agradecer.
-Sim, mestre!
- Gafanhota, um último detalhe, não se apaixone. Bege não é para apaixonados. Paixão é demasiadamente pessoal, descabela a escova de chocolate, deixa o nariz vermelho ao chorar, provoca suor e amarfanha a roupa. Paixão entranha na carne e desfaz o plástico da plástica.
- Filosofia às seis da tarde.
-Realismo às seis da tarde. Bem, daqui a pouco começa um curso de vinho aqui perto, vamos?
-Eu não gosto de vinho.
-Quem disse que precisa gostar? Não ouviu nada do que eu disse? Aprenda uns nomes, cheire a rolha e uns detalhezinhos para evitar gafes. Aparente que conhece, já basta.
Estou convidada para o café hoje? A inscrição do curso me deixou quebrada.