O RINOCERONTE MÍOPE
Ao ler, ri muito da maluquice da situação estapafúrdia, lembrando-me de que, num parque semelhante em São Paulo, uma vez uma girafa mordeu a calha da janela de meu carro, quebrando-a e, acrescentando o insulto à injúria, babou profusamente sobre o vidro e meu braço junto à janela. Aventuras de Nina Clouseau.
Deixei a notícia de lado, envolvida no dia a dia.
No entanto, descobri-me pensando em Sharka, novamente, ao final do dia. E outra vez, não mais achando engraçado. Afligiu-me. Não sei as respostas corretas, biológica ou zoologicamente aceitáveis para o comportamento do paquiderme. Sei o que a história me suscitou depois. Perplexidade e inquietação.
Ao repensar sobre o acontecido, vi-me rinoceronte. Aprisionada num parque, tendo meu habitat e minha vida sistematicamente invadidos por seres e situações estranhas a mim, espetáculo patético para turistas curiosos.
Pensei se não seríamos todos, em alguns momentos, rinocerontes, encouraçados, abrutalhados e míopes, aprisionados e alienados de condições mínimas de existência que preservem o sentido de ser.
Não sou um rinoceronte quando crio carapaças para conseguir viver no Rio de Janeiro?
Não sou um rinoceronte, míope para as crianças a vender balas, fazer malabarismos, simplesmente mendigar ou expor suas mazelas nos sinais de trânsito?
Em Salvador, no Acarajé da Dinha, quiosque mais que conhecido num largo da cidade, mal conseguimos comer o famoso quitute, de tantos pedintes à nossa volta. É preciso ter a pele dura e a vista curta para sentir bem estar e felicidade frente à miséria humana.
Sou um rinoceronte quando não mais consigo distinguir, com clareza, se paranóia ou mero instinto de preservação, o medo que me faz recear as saídas mais inocentes, minhas e daqueles a quem amo, sem saber se voltaremos incólumes para casa.
Fui ao meu amado Google saber mais sobre ser rinoceronte.
Lá, descubro que são espécies ameaçadas, mantidas em reservas protegidas dos homens que os ameaçam em seu próprio ambiente, alvos, como tantas espécies, da cobiça humana por suas peles, ossos, penas e pêlos ou mera exibição de poder.
Também fui buscar a peça homônima de Ionesco, talvez tentando entender porque me sentia tão rinoceronte.
Ionesco, assinalara, muito antes do mal estar que o rinoceronte míope me provocou, que a impermeabilização ao sofrimento que não impede a morte de uma existência pessoal.
A peça trata da perda da condição humana, da acomodação e da indiscriminação que vai tomando conta de toda uma cidade, metamorfoseando seus habitantes em rinocerontes, com a exceção de um único homem, que resiste à tentação de tornar-se rinoceronte, iguais aos outros, tentando, como pode, manter-se homem em meio a uma rinocerontização progressiva.
Um artigo de Murilo Badaró pode ser lido, na íntegra, através do link. Num pequeno trecho deste, ele comenta sobre a peça: “É uma crítica genial contra o estado de rinocerontização em que estão envolvidas muitas sociedades modernas, povoada de rinocerontes representados pela adesão consciente ou inconsciente à permuta do belo pelo feio, do culto pelo inculto, do lícito pelo ilícito, do justo pelo injusto, do moral pelo imoral, do correto pelo incorreto, enfim, a distorção a todos envolvendo a ponto de não ser mais possível ou até mesmo razoável a reação”.
Associo, entre outras “viagens”, ao lado cruel e doentio da globalização, à cegueira branca de Saramago, à metamorfose de Kafka, ou, indo mais além no passado, aos soldados de Ulisses, transformados em porcos por Circe. A literatura é pródiga em advertências sobre a importância da manutenção de nossa humanidade. Hoje, no entanto, foi Sharka, o rinoceronte míope, que me ajudou a perceber quão vulneráveis podemos ser a uma rinocerontite aguda.
O rinoceronte de Dürer