Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

quinta-feira, abril 26, 2007

Perdoam-se os lobos, condenam-se os cordeiros

Ontem, como nestes últimos tempos, preocupava-me com o horário de chegada de minha filha adolescente. Não era madrugada, nem mesmo tarde da noite. 20h30min e eu já aflita com um atraso de pouco minutos. Na cozinha, minha empregada pede para ligar para sua casa. Também ela precisa se tranqüilizar, quer confirmar a chegada do filho adolescente em casa. Na TV, cenas de novos tiroteios, pessoas correndo, fugindo das balas. Ela teme, hoje com mais razão que eu, por sua prole – o tiroteio é perto da casa de sua irmã, onde o filho estuda música.
O tráfico disputa territórios deixando um rastro de sangue e medo na cidade. Ouvimos que o governo cria o trigésimo sexto cargo de ministro e juízes corruptos são avisados com antecedência sobre investigações e saem ilesos.
O presidente fanfarroneia, alucinado, sua pretensão em legar um ensino de qualidade enquanto o MEC divulga os resultados alarmantes do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) no país. Apenas em dez, dos mais de 5500 municípios brasileiros os alunos da rede municipal de ensino básico conseguiram um índice compatível com o de países desenvolvidos.
A lista segue, interminável.
Lembro-me de uma frase de Vitor Hugo:
Perdoam-se os lobos, condenam-se os cordeiros.

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segunda-feira, abril 23, 2007

Em boa companhia

No último sábado, o Caderno Prosa e Verso de O Globo apresentou uma entrevista da escritora americana Paula Fox. Na entrevista, Paula declara que “tornar-se consciente de si mesmo é a pior coisa que pode acontecer a um escritor.” “Por um tempo”, confessa, “eu me pus na jaula de meus admiradores”.
Atraída pela chamada da entrevista, interessei-me e a li com atenção. Cito abaixo o comentário final da escritora ao descrever sua experiência após ter sido aclamada pela crítica e pelos leitores:
“Foi chocante. Fiquei muito assustada, me tornei muito consciente de mim mesma, e isso é o que é proibido a um escritor. Virginia Woolf disse muito bem quando falou: “percebi que estava em apuros quando comecei a procurar meu nome no jornal”. Eu senti que precisava voltar ao isolamento e à tranqüilidade. As vozes tinham de morrer”.
No post anterior, havia comentado sobre insights e a entrevista, oportuna, ajudou-me a ter uma melhor compreensão acerca da minha total irregularidade na escrita e na dificuldade monstruosa em buscar o que tanto desejo e é, agora, evidente, temida na mesma proporção – ser escritora.
Sou consciente demais de mim mesma, receosa demais em me expor e me lançar, dividida entre a necessidade de fazer uma conexão entre o mundo de dentro e o de fora e o desejo de não me expor, paradoxo que me faz produzir textos em conta-gotas, vinhetas que acabam não se desenvolvendo em projetos de mais vulto. É difícil expressar a frustração a que isso conduz, equivalente a dirigir um automóvel com o freio de mão puxado.
Sempre escrevi para mim, mostrando a poucos o que produzia. O acaso e a iniciativa de uma pessoa próxima, na época, levou-me ao mundo dos blogs em seus primórdios. As dificuldades pessoais dos envolvidos no blog original levaram ao encerramento deste.
Um outro blog surgiu, este – Almas Inquietas – um lugar de descoberta e maravilhamento no mundo da escrita. A possibilidade de escrever e ser lida, protegida pelo anonimato e o encontro com páginas fantásticas e escritores maravilhosos, do lado de cá e do lado de lá do Atlântico, foi uma experiência maravilhosa.
Eu adorava. Divertia-me e percebia que, quanto mais escrevia, melhor fluíam as palavras. Os comentários recebidos, os elogios eram puro deleite. Ver-se reconhecida por pessoas desconhecidas, mas que compartilhavam das vivências que eu relatava, era fantástico.
Bem, o blog tinha um bendito de um contador de acessos à página que dizia não só o número de visitantes, mas sua origem. Quanto mais o contador girava, mais empolgada eu ficava. Visitava a página várias vezes, desejando aumentar, a cada dia, o número de visitantes a ela. Mesmo cansada do trabalho diário, escrevia um material, acessava os blogs linkados, deixando comentários aqui e ali numa política de reciprocidade. Até aí, nada demais.
A encrenca começou quando, mais do que o prazer de escrever, o interesse em ser lida começou a prevalecer.
Guardadas as devidas proporções, é claro, Paula Fox e Virginia Woolf relatavam o que havia sentido e o que se passara comigo, a sensação de entrar numa jaula, como descreveu Paula. Francamente, foi um alívio ler o que elas relataram. Se é maluquice sentir-se assim, ou narcisismo demais, fazer o quê? Não escolhemos o que sentir e, além do mais, descobri estar em excelente companhia.
Sentia-me demasiadamente exposta, querendo ser vista, mas sem querer me mostrar. Ou seguia com a construção de um personagem para ficar em exposição ou ia para o fundo da toca. Para quem já tem como enigma na vida a busca de ser quem é, a criação de uma persona a mais, naquela altura do campeonato, foi too much.
Voltei a ser totalmente desconhecida, ou melhor, aquela que escrevia, silenciou.
Não de vez, felizmente. Ensaio agora uma nova tentativa.
Sem marcadores, sem visitas anunciadas nos blogs dos amigos, tentando ter mais intimidade comigo, lendo, apreciando o trabalho de tanta gente boa.
Escrevendo de novo.

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Insight




O quebra-cabeças assume sua forma integral antes mesmo de ser completado.
Não sei se é uma boa imagem a que agora utilizo. Parece-me pobre e clichê demais para descrever a apercepção súbita de um aspecto da história pessoal, onde tudo se encaixa e o sentido de uma sucessão de acontecimentos emerge de dentro da própria pessoa.
Não importa que não seja a totalidade da imagem. Muito provavelmente é apenas um pequeno pedaço que, por mais que nos esforçássemos, permanecia deslocado impedindo que a montagem do total pudesse prosseguir. A peça estava lá o tempo todo, é apenas mais uma misturada com tantas outras. Já havíamos tentado utiliza-la, sempre sem resultado, seja por haver procurado nos lugares errados ou porque a posição era inadequada para a peça.
Os psicanalistas chamam de insight a este tipo de compreensão que, embora também pautado pelo intelecto, origina-se, acima de tudo, do interior de si mesmo, encadeando acontecimentos passados e presentes em um contexto de continuidade.
De qualquer maneira, a mudança. De qualquer maneira, um discernimento relativo a uma experiência, de tal ordem, que cria laços consistentes entre o que é vivido e o que é pensado e ilumina o lugar onde estou e a mim.
O mais curioso e o melhor de tudo é que não se trata de uma epifania, uma revelação. Nenhum deus apareceu, nenhuma verdade absoluta é demonstrada. Não precisa ser corroborado por outrem, nem sequer comunicado, caso não o deseje, pois não é uma comunicação que venha do mundo externo. Não precisa ser defendido ou preservado. Muito provavelmente, é um detalhe pequeno, insignificante, uma mudança de lugar que propicia um olhar novo para um fato velho.
De qualquer maneira, mudança.
Que venham outras,
amém.
Fonte da imagem: sonic.net/.../alienskin_xenofex2/puzzle.jpg

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quinta-feira, abril 12, 2007

SEI QUE CHOVEU À NOITE


Sei que choveu à noite. Em cada poça há um brilho azul e
nítido.
Sobre as telhas, os diabinhos invisíveis do vento escorregam
num louco tobogã.
Um mesmo frêmito agita as roupas nos varais e os brincos
nas orelhas ...
Ó ânsia aventureira! Parece que surgem bandeirolas nos
dedos mágicos dos inspetores do tráfego ... Ah, que
vontade de desobedecer os sinais!
E mesmo as escolas, onde agora está presa a meninada, nunca
essas escolas rimaram tão bem com opressivas gaiolas ...
Só deveria haver escolas para meninos-poetas, onde cada um
estudasse com todo o gosto e vontade o que traz na
cabeça e não o que já está escrito nos manuais.
E, se duvidares, daqui a pouco sairão voando todas as
gravatas-borboletas, enquanto os seus donos atônitos
aguardam o sinal verde nas avenidas. Decerto elas
foram em busca de novos ares ...
Mas sossega, coração inquieto. Não vês? Sob o azul cada
vez mais azul, a cidade lentamente está zarpando para
um porto fantástico do Oriente.

Mario Quintana

P.S. Paulo, um beijo! Como vê, amei o poema. Thanks.

Fonte da Imagem: http://www.tabuademares.blogger.com.br/quintana1.jpg

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terça-feira, abril 10, 2007

Brincar de esconder



É bom voltar a escrever. É bom que eu possa ter liberdade para fazê-lo ou não, dependendo do humor e do tempo disponível, sem me sentir obrigada a qualquer coisa. Claro que a obrigação é totalmente imaginária, mas nem por isso menos exigente.
Pago o pato do longo silêncio. A fluência é escassa e o texto sai aos solavancos, desgracioso. Faz parte, isso volta.
O engraçado é que não deixei de conversar comigo, de escrever mentalmente, mais que hábito é jeito de ser. O entrave surgiu no publicar, postar no blog. Embirrei. Lembro-me da brincadeira de esconde-esconde. É uma delícia se esconder e é terrível quando desistem de nos procurar. Acho que é mais ou menos isso que aconteceu. Resolvi me esconder. E me escondi bem, por um tempão. Agora, ponho a cabeça para fora do esconderijo, arrisco uma olhada em volta, sinto saudade do grupo e da brincadeira.

Imagem: Anne Karin Glass ( http://www.annekaringlass.com )

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segunda-feira, abril 02, 2007

O sustentável peso de ser


O aeroporto estava cheio.
Viajantes, acompanhantes e funcionários formigavam sob a abóbada comercializada do saguão central. Estava preparada para longas horas de suplício aguardando aviões que não aterrissavam, embarques que não se realizavam, brigas e tensão, tudo que efetivamente acontecera na vinda à São Paulo.
Para minha surpresa, na volta tudo transcorreu dentro da maior normalidade. É assustador um país onde inusitada é a normalidade, o cumprimento de tarefas e o exercício do direito de ter um serviço prestado corretamente, assunto para nova postagem.
Feitos os procedimentos de embarque, dirigi-me ao terminal correspondente ao meu vôo. Era o último, ao fundo do imenso salão. Pouca gente aguardando, cedo ainda, pude escolher uma cadeira bem central, avistando quase que todo o espaço da sala de embarque, numa posição privilegiada, um convite a dialogar com meus pensamentos e entreter minha imaginação.
Sempre gostei de gente, de ouvir histórias sobre pessoas. Quando não sei e tenho a chance de olhar atenta,invento eu as estórias, delineio personagens, articulo enredos.
Diverti-me imaginando destinos e intenções. Olhava um, olhava outro, imaginava suas vidas, para onde iriam, quem iriam encontrar, a razão de sua viagem, coisas assim.
Dentre todos, um rapaz se destacou. O interessante é que nada havia para destacá-lo, nada havia nele de exótico ou exuberante. Ao contrário, as roupas eram caras, era evidente o sobrenome das grifes em cada peça, o conjunto elegantemente estudado para ser casualmente rico, refinadamente low profile.
De excessiva, apenas a magreza dos ascetas antigos,dos anoréxicos, daqueles a quem o corpo não é mais morada, mas fardo. As roupas pareciam estar sustentadas num cabide de arame, quase desprovidas de sustentação, assim como o boné que , voltado para trás, parecia grande demais, frouxo no crânio. O rosto nada tinha de especial, nem feio nem bonito. Era jovem, bem jovem.
Descrevendo-o, dou-me conta do que o destacava do grupo em volta. A juventude, evidente nas roupas e no corpo, era estranhamente ausente no conjunto geral. Pensei nos protótipos de magreza. Um Quixote?
Não, não era um Quixote. Faltavam-lhe os olhos febris e a intensidade corporal que atribuo ao Cavaleiro da Triste Figura. O rapaz não era um cavaleiro da triste figura - nem no traje nem na alma - mais irreal que o Quixote de minha imaginação.
Não conseguia criar-lhe uma vida, dar-lhe uma história, sentimentos ou destino. Parecia-me um corpo cuja leveza do material não lhe conferia substância de uma existência encarnada. Não consegui imaginá-lo ansiando por chegar a algum lugar ou aflito por rever alguém, nem sofrendo e nem vibrando. O que se destacava não era sua presença, mas sua ausência de si mesmo, ao meu olhar.
Baixei os olhos e voltei-os para dentro de mim, para minhas turbulências. Senti meu corpo e de tudo aquilo que vive dentro dele. Meu sentimento foi de alívio. Apesar das imperfeições,incertezas e dúvidas, habito-me. Minha alma tem morada.

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domingo, abril 01, 2007

Como é por dentro outra pessoa?

Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Como que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.


Fernando Pessoa

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