Acorda, no meio da noite, quando ele vai dormir. O peso do corpo, batendo surdamente no colchão e o cheiro, meio azedo, meio almiscarado denuncia a identidade do homem. O cheiro. Ainda lhe agride as narinas, ainda lhe é agressivo. Ainda não se habituou. Ou se habitou e agora esquece de esquecer, nem sabe.
Mais um pouco. A tortura tem seu curso previsto. Mais um pouco e ele começará a roncar. Vai roncar tão alto, tão forte, que ela vai querer socar, esmagar, enterrar, cobrir de panos e terra e pó aquela boca. Mas só vai por as mãos sobre a própria boca, o punho dentro da boca, morder as falanges para calar o grito e conter a mão.
Os olhos fechados, sempre. Indiferente, também, se abertos. É sempre escuro. Pena não fechar ouvidos e narinas. Fechar todos os buracos. Todinhos. Não deixar um aberto ou funcionando, que seja. Todos o buracos fechados. Uma mulher sem buracos, isso seria uma vingança. Ele ia ter uma mulher sem buracos. Não quer uma mulher sem visão, sem voz, sem alma própria? Que tenha uma mulher sem buracos.Ela ia ser uma mulher sem buracos. Sem nenhum, um que fosse. Não ia poder entrar nela, atingir a ela, sequer tocar algo mais que uma superfície sem buracos. Impenetrável. Invulnerável. E ele poderia gritar, socar, tentar arrombar. Não ia entrar. Não haveria buracos.Ia ser bom. Bom saber que ele perderia, no fim.
Ele dorme. Profundamente. Não precisa ser a mulher sem buracos agora. Relaxa o corpo, desenrola-se da bola que fizera de si mesma. Os braços doem, o pescoço também. Estica as pernas com mais cuidado, para longe do som e do cheiro. Desde muito, aprendera a usar o pouco espaço que lhe cabe na cama. Desde muito, aprendera a ser, como as plantas no deserto, ou bichos no Ártico, a viver com o mínimo. Se não viver, sobreviver. Armazenar, guardar dentro de si, toda a vida. Parecer seca, árida, misturada com a paisagem. Enganar o predador, suplantar as intempéries, parecendo não ter o que cobiçarem tirar dela.
Ouvira sobre os bichos, um dia, na TV. Na TV que ele assistia, cego, a seu lado. Sempre cego. O ronco é alto, como sempre. A respiração custosa, arfante, mexe o corpo que mexe o colchão. Expulso o sono, a cama a repulsa. Senta-se. Devagar. Em silêncio. Busca a chinela no pé da cama, com o pé. O chão é frio. Devagar. Levanta-se e caminha no escuro do quarto. Conhece seu cativeiro. Dois passos até o pé da cama. Do seu lado da cama, até à janela, nove passos. À esquerda, o baú do enxoval. Há o fecho, quebrado, que lhe arranha a perna, tantas vezes. A janela. Agora pode ouvir a cortina de voile, murmurando com o vento. Sente o cheiro do quintal, cheiro de noite e de ar frio. Inspira fundo, muitas vezes. As narinas se abrem, o peito se dilata, os ouvidos se banham com o silêncio e a pureza da hora. Abre os olhos. Ela veio.
Se alguém a visse, ali, parada na janela, certamente iria se perguntar o que estaria fazendo aquele vulto, imóvel. Não conseguiria distinguir, nas sombras, a chegada da outra mulher.
A outra mulher só chega à noite, no silêncio. Chega colorida, vibrante, luminosa. Chega abusada, com roupas de muitas cores e língua solta. A outra mulher ri. A outra mulher não conta os passos. Anda despreocupada, empurra o que lhe vai à frente, ou se demora, curiosa em conhecer o que lhe vem de encontro. A outra mulher tem querer. A outra mulher escolhe seu homem. Não tem o terror de ficar só, sem guia. A outra mulher joga fora baús e homens que machucam. A outra mulher chega com a promessa de, um dia, vir de dia.
Não sabe se gosta ou detesta a outra mulher. A outra mulher caminha pela vida, não fica presa como ela, a ele, a casa, à cama. A outra mulher não se encolhe, se abre, se oferta, se entrega, escolhe. A outra mulher geme e fala de gozo. Para ela, logo para ela, a outra mulher fala de gozar e parir e criar. Melhor ser a mulher sem buracos. A mulher sem buracos não vê mais do que ela. Não sente mais que ela. Ela inveja a outra mulher. Mas não consegue deixar de se encantar com o que faz a outra mulher.
O ronco diminui. O sono menos ruidoso avisa que ele vai acordar. A outra mulher se foi. A outra mulher nunca fica. Sempre vem na noite. Sempre vai quando as sombras se vão. Ela devia mandar a outra mulher embora para sempre. Nunca mais esperar por ela. Chamar por ela. Não ansiar pela vinda da outra mulher. Não sabe porque chama e espera a outra mulher e porquê as noites em que ela não aparece se mantém negras até sua volta.
Não. Ela sabe. Ela sabe porque sempre espera pela outra mulher. Porque a outra mulher promete que, um dia, vem de dia. E nesse dia, talvez, possa deixar de ser a outra mulher.