Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

quarta-feira, março 31, 2004



I'm no model lady. A model's just an imitation of the real thing. (Mae West)

Tenho uma verdadeira fascinação pelos grandes frasistas: Mae West, Groucho Marx, Oscar Wilde, W.C. Fields, Woody Allen, Guimarães Rosa, Millôr Fernandes, Luis Fernando Veríssimo (tendo tempo, faço um link para cada um).
Numa sentença irretocável e cheia de humor, eles nos colocam no devido lugar, lembrando-nos de nossos pequenos e grandes defeitos.
Hoje estava preocupada demais em escrever algo legal. Desisti e chamei a Mae West.
Ela sempre é uma grande amiga e conselheira quando me lembra que quem não consegue rir de si mesmo e da vida, não é sério.

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segunda-feira, março 29, 2004

AZUL


Wayne Vipond


Hoje, caminhando em minha trilha, encontrei borboletas.
Muitas. Ora sós, ora aos pares, em grupos, borboleteavam como só elas sabem borboletear.
Eram azuis. Absurdamente azuis.
De muitos tamanhos, pequenas, maiores, imensas, do tamanho da palma da minha mão.
Olho em volta deliciada e percebo que elas também tingiram de azul o céu e o mar.
São tantos azuis neste começo de dia... Azuis claros, azuis esverdeados, azuis da cor de mar, azuis acinzentados, azuis turquesa, inundando-me em azul.
Desejo e consigo, quero crer, que esse azul se estenda até você.

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sábado, março 27, 2004

Ressonância Schumann

Transcrevo abaixo um artigo maravilhoso de Leonardo Boff

4.março/2004 - Brasil - Não apenas as pessoas mais idosas, mas também jovens fazem a experiência de que tudo está se acelerando excessivamente. Ontem, foi carnaval, dentro de pouco será Páscoa, mais um pouco, Natal. Esse sentimento é ilusório ou possui base real? Pela "ressonância Schumann" se procura dar uma explicação. O físico alemão W.O. Schumann constatou em 1952 que a Terra é cercada por um campo eletromagnético poderoso que se forma entre o solo e a parte inferior da ionosfera que fica cerca de 100 km acima de nós. Esse campo possui uma ressonância (dai chamar-se ressonância Schumann) mais ou menos constante da ordem de 7,83 pulsações por segundo. Funciona como uma espécie de marca-passo, responsável pelo equilíbrio a biosfera, condição comum de todas as formas de vida. Verificou-se também que todos os vertebrados e o nosso cérebro são dotados da mesma freqüência de 7,83 hertz. Empiricamente fez-se a constatação que não podemos ser saudáveis fora desta freqüência biológica natural. Sempre que os astronautas, em razão das viagens espaciais, ficavam fora da ressonância Schumann, adoeciam. Mas, submetidos à ação de um "simulador Schumann" recuperavam o equilíbrio e a saúde.

Por milhares de anos as batidas do coração da Terra tinham essa freqüência de pulsações e a vida se desenrolava em relativo equilíbrio ecológico. Ocorre que, a partir dos anos 80 e de forma mais acentuada a partir dos anos 90, a freqüência passou de 7,83 para 11 e para 13 hertz por segundo. O coração da Terra disparou. Coincidentemente desequilíbrios ecológicos se fizeram sentir: perturbações climáticas, maior atividade dos vulcões, crescimento de tensões e conflitos no mundo e aumento geral de comportamentos desviantes nas pessoas, entre outros. Devido a aceleração geral, a jornada de 24 horas, na verdade, é somente de 16 horas. Portanto, a percepção de que tudo está passando rápido demais não é ilusória, mas teria base real neste transtorno da ressonância Schumann.

Gaia, esse superorganismo vivo que é a Mãe Terra, deverá estar buscando formas de retornar a seu equilíbrio natural. E vai consegui-lo, mas não sabemos a que preço, a ser pago pela biosfera e pelos seres humanos. Aqui, abre-se o espaço para grupos esotéricos e outros futuristas projetarem cenários, ora dramáticos, com catástrofes terríveis, ora esperançadores como a irrupção da quarta dimensão pela qual todos seremos mais intuitivos, mais espirituais e mais sintonizados com bioritmo da Terra.

Não pretendo reforçar este tipo de leitura. Apenas enfatizo a tese recorrente entre grandes cosmólogos e biólogos de que a Terra é, efetivamente, um superorganismo vivo, de que Terra e humanidade formamos uma única entidade, como os astronautas testemunham de suas naves espaciais. Nós, seres humanos, somos Terra que sente, pensa, ama e venera. Porque somos isso, possuímos a mesma natureza bioelétrica e estamos envoltos pelas mesmas ondas ressonantes Schumann. Se queremos que a Terra reencontre seu equilíbrio devemos começar por nós mesmos: fazer tudo sem stress, com mais serenidade, com mais amor que é uma energia essencialmente harmonizadora. Para isso importa termos coragem de ser anti-cultura dominante que nos obriga a ser cada vez mais competitivos e efetivos. Precisamos respirar juntos com a Terra para conspirar com ela pela paz.

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quinta-feira, março 25, 2004

SENSIBILIDADES COMPLEXAS



Ostras são seres de sensibilidade complexa.
Lembram-me certos humanos, com a mesma necessidade de construir carapaças
protetoras em volta de seus interiores vulneráveis.

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quarta-feira, março 24, 2004

MEU RITO


Pensamentos são fugidios. Fugidio talvez não seja a palavra mais adequada. Pensamentos são líquidos, onde a palavra cria o texto continente que lhe dá forma.
A imagem não é nova, mas meu texto continente é só meu. Vai ter de mim em cada traço que o delineie, em cada gesto que amasse, amando e modulando linguagens, argila e sonho, no esforço de capturar esses líquidos e criar espelhos d’água a refletir imagens daqueles que neles se debruçarem.
Há momentos em que distraída, ocupada, aflita, preguiçosa, insegura, não me deixo mergulhar no líquido, para nele buscar o continente certo para contê-lo. No entanto, independente de continentes, o fluxo é constante, volumoso, é urgente dar alguma forma aos pensamentos.
Antes, eu achava que uma caneca comum, ou a concha de minhas mãos não serviria. Só poderia abrigá-los em belos vasos, xícaras finíssimas, rebuscadas. A valia, imaginava eu, estaria na bela forma, prisioneira de uma estética idealizada, que exigia de mim uma perfeição impossível. Deixava meus pensamentos escorrerem no ralo do esquecimento e, junto com eles, minha necessidade de comunicar ao outro meu sentir.
Não quero mais finos cristais ou translúcida porcelana. Ou pelo menos, não só eles. Se for feliz, haverá dias de festa onde cristais e pratas serão usados. Mas haverá muitos mais, de cotidiano, vidro comum e louça diária. E eles serão também bons, mesmo que sejam maus. Não importa o vasilhame, se o líquido puder ser oferecido e gerar algum prazer, em mim, ao ofertá-lo e ao outro em aceitá-lo.
Quero, talvez, ser uma xícara de chá ou café turco, tomada nos bons e nos maus dias, para confortar, celebrar ou simplesmente exercitar o paladar. Quero deixar ao fundo, folhas, borra ou leve marca na superfície, vestígios que podem ser interrogados por almas inquietas e curiosas. Ou não.
Não importa. Não importa, quando percebo que comecei a escrever pensando em sapatos e fui mergulhando no fluxo de pensamentos, me deixando levar, sem preocupações de me forçar a buscar alguma margem. Não me importa, se puder sentir o mutante volume das palavras e me ver tomada pelo gosto imenso em pincelar letras na tela branca, num prazer crescente em escrever.
Meu mergulho na escrita é meu batismo. É meu rito. Renasço a cada vez.



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segunda-feira, março 22, 2004

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Diz a História que Isaac Newton formulou a lei da gravidade ao descansar sob uma macieira e observar a queda de uma maçã.
Assim, não deve surpreender a ninguém que uma grande descoberta sobre relacionamentos tenha sido feita embaixo do chuveiro.
Cristalina como a água que caía sobre mim, veio-me à mente uma imagem perfeita: Relacionamentos são como sapatos.
Antes que receba olhares penalizados, coitadinha, está variando, ou então olhares de soslaio e sobrancelhas suspeitosamente levantadas, vou explicar a simplicidade e clareza dessa analogia.
Tomava meu banho e filosofava sobre a vida. Enquanto lavava os cabelos, pensava sobre o fim de relacionamentos amorosos, sobre o início, o encantamento, o dia a dia, a crise, a ruptura dolorosa, as tentativas de retorno. Reencontro possível ou término definitivo? Qual é o ponto nevrálgico que delimita a fronteira entre o reparável e o irreparável?
Lembrei-me de minha avó e a vi mais uma vez, com os olhos da memória, numa cena rotineira, eu devia ter uns sete, oito anos, falando de um determinado sapato que lhe era caro:
-Esse pode jogar fora, quebrou a alma.
Lembro-me do susto pela frase inusitada e da pergunta subseqüente, inevitável:
-Sapato tem alma?
Ela me responde que sim, mostrando-me que alma era a sustentação dada pela palmilha no vão da sola do pé. Uma vez rompida esta sustentação, torna-se impossível o reparo do sapato.
Minha avó respondeu às minhas conjecturas. Irreparável então, é quando a alma se quebra.


P.S. Em breve, mais semelhanças entre relacionamentos e sapatos.

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sábado, março 20, 2004

OUTONO

Pedro, doce amigo, envia um e-mail onde me lembra da chegada do outono e do sentimento de melancolia associado à estação. Anexa Autumn Leaves com Diana Krall e sugere: Que tal um post sobre o outono?
Para completar, hoje, justamente hoje, é o Equinócio de Outono no hemisfério Sul e o de Primavera no Norte. Um dia mágico.


Querido Pedro,
Como você sabe, nasci, me criei e vivo nos Trópicos. Minha cidade só tem duas estações: mais quente e menos quente. Não tem árvores de tons cambiantes. Não tem a queda abrupta de temperatura nem o vento gelado insinuando o inverno a chegar. Aqui, o outono é infinitamente mais suave, sutil, quase imperceptível. Dias claros, de sol amoroso, menos inclemente. O meu outono tem muitas cores, não nas folhas, mas nas flores, como acontece com as quaresmeiras explodindo em roxos e violetas. Tem dias com a luminosidade mais bela do ano, que enfeita, banha e deslumbra sem ofuscar.
Só conheci o outono, como o outono de que ouvia falar, no final de setembro passado, quando estive do outro lado do oceano a ver amigos queridos, ganhando um carinho mais que necessário.
Deslumbrei-me com a paisagem de mudanças vertiginosas em poucos dias, as árvores tingindo-se em vermelhos, amarelos, laranjas, ocres e marrons, uma profusão de tons indescritível. Caminhei por bosques cujas trilhas ficavam cada dia mais macias das folhas que buscavam a terra para descansar e renascer. Descobri o valor de um casaco a aquecer o corpo, o aconchego de um cachecol a envolver o pescoço, a friagem da neblina misturar-se ao ar que expirava, tornando tudo uma paisagem de sonho.
Descobrir o outono foi um presente.
Não, Pedro, não sinto melancolia no outono. Sinto-o como uma promessa, um período de transição, de aviso. Ele me mostra que os ensolarados dias de verão, assim como os mais sombrios dias de inverno, são temporários, de que tudo tem seu tempo e que nada dura para sempre. Ele me aponta, concretamente, do passar da existência e da existência de um tempo finito e de mudança, que me liberta do medo maior da prisão intolerável do eterno e do imutável.
Um beijo,
Nina


Yolanda Mohalyi
Outono, 1972
óleo s/ tela

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RECEITA PARA A FESTA DE MABON

Separe os ingredientes:
2 colheres (sopa) rasas de água morna
1 tablete ou 15 g de fermento biológico (para pão)
1 xícara (chá) de leite morno
1 colher (sopa) de margarina
1/4 xícara (chá) de mel
1 colher (chá) de sal
3 xícaras (chá) de farinha de trigo
1 punhado de uvas passas

Misture fermento, água, sal e mel, e deixe descansar pôr 15 minutos.
Em seguida, acrescente leite morno, farinha e margarina, mexendo até
formar uma massa que desgrude das mãos (se necessário, acrescente
mais farinha). Junte as passas, coloque em forma de pão e deixe
descansar até dobrar de tamanho. Leve ao forno pré-aquecido para assar.

Decore uma mesa com folhas secas, maçãs, espigas e trigo. Com o pão de passas assado e uma taça de vinho celebre o Equinócio de Outono.

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sexta-feira, março 19, 2004

BOM DIA

Acordei com vontade de vida. O dia não amanheceu especial, o céu não está particularmente belo, nem vi pássaros cantando à minha janela. Ao que parece, mais um dia comum, uma sexta feira como tantas. No entanto, algo é novo, ou pelo menos, não tão usual que eu possa reconhecer como corriqueiro. É este súbito sentimento de abraçar a vida, a percepção clara, cristalina, mais cristalina que a luz injustiça deste dia mostra, de que a vida vale a pena ser vivida. Bom dia.

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SÁBIO DRUMMOND

"...Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?"
Carlos Drummond de Andrade - Procura da Poesia

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quinta-feira, março 18, 2004

MÚLTIPLA



Há horas em que me sinto tantas que meus Eus me atordoam.
Tonta ao falar de mim, a cada instante não mais sou o que sou.
Se deste modo ou daquele modo, em nenhum modo toda eu sou, como se todas pertencessem a um eu mais amplo, caleidoscopicamente organizado ou facetadamente desordenado, no movimento incessante do momento vivido.

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quarta-feira, março 17, 2004

O MAL NÃO É MAU

Diante dos acontecimentos da semana passada, diante das violências que, de tão cotidianas, correm o risco de se tornarem banais torna-se irrefutável, para mim, reconhecer: o mal existe.
Mais aterrorizante, é que não o descubro como algo externo, força na natureza, Diabo ou Satã, mas presente muito mais próximo: o mal é humano. Humano não. O mal é quando o humano deixa de existir.
O mal não é mau, nem é apaixonado, nem sofredor, nem passional. O mal não sente raiva ou ódio. O mal não é nem quente, como erradamente sugere a idéia de inferno.O mal é vazio. O mal é gelado. Tem a frialdade da solidão catastrófica.
É um grande buraco negro, um vórtex no vácuo, destruindo a capacidade de compreender, aniquilando identidades e sentidos. O mal é o assassinato da compaixão.

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terça-feira, março 16, 2004

SECRETAMENTE

SECRETAMENTE
Virgínia Schall



Seus olhos estão perigosamente dentro
de mim
aqui fizeram morada
e estão como Deus
em toda parte
se interpondo
entre a paisagem mais próxima
entre a fresta de luz e a imagem
tangenciando meu olhar
que não sabe olhar puro
que se trai a cada segundo.

Seus olhos estão perigosamente pousados
sobre mim
como borboleta em flor
cobrindo minha pele em ternura
suaves como seda
a farfalhar sobre os poros
e os pelos.
Luzes que incendeiam
em sublime música
meu corpo aceso em sede
Sombras sobre minha noite
embalam meu sono
devassando meus sonhos
onde secretamente me assombram
estando fora e sendo dentro
espelhos de amor intenso
e imenso.

Nossos olhos estão perigosamente
em comunhão
a despeito da separação
que a vida nos impõe.
E nossas vidas
sob risco
entre sermos felizes
ou tristes
e nossos destinos
por um triz
entre sucessos
e desatinos.
Secretamente
espreitamos-nos
como caminhos
à beira
de atraentes abismos.

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sábado, março 13, 2004

PAZ

"Olho por olho e o mundo acabará cego" - Mahatma Ghandi



Dia a dia a violência vai colhendo mais corpos. Ensangüentados, perfurados por balas ou despedaçados por bombas. Jovens, velhos e bebês, de muitas etnias e credos, homens e mulheres. Todos mortos. Mortes sem sentido. Inúteis.
Violência gerada nas relações de poder, presente nas ações do opressor e do oprimido. Que bem pode advir de um mal tão grande?
A violência é mais cruel do que demonstra. Ela destrói mais do que corpos. Destrói, sentidos, identidades e a fé na experiência humana.

"Não há caminhos para a paz, a paz é o caminho"
(Ghandi)



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quinta-feira, março 11, 2004

MAIS ALÉM

Abro a janela e tento ver além de mim. Parece que é sempre o além que busco.
Além das palavras, além do cotidiano, além de onde meus sonhos podem alcançar. Procuro a luneta da minha imaginação e percorro o horizonte infinito das possibilidades. É de lá que vem as múltiplas imagens e as inúmeras histórias, que passo a vida hesitando entre viver ou descrever.

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quarta-feira, março 10, 2004

A OUTRA MULHER

Acorda, no meio da noite, quando ele vai dormir. O peso do corpo, batendo surdamente no colchão e o cheiro, meio azedo, meio almiscarado denuncia a identidade do homem. O cheiro. Ainda lhe agride as narinas, ainda lhe é agressivo. Ainda não se habituou. Ou se habitou e agora esquece de esquecer, nem sabe.
Mais um pouco. A tortura tem seu curso previsto. Mais um pouco e ele começará a roncar. Vai roncar tão alto, tão forte, que ela vai querer socar, esmagar, enterrar, cobrir de panos e terra e pó aquela boca. Mas só vai por as mãos sobre a própria boca, o punho dentro da boca, morder as falanges para calar o grito e conter a mão.
Os olhos fechados, sempre. Indiferente, também, se abertos. É sempre escuro. Pena não fechar ouvidos e narinas. Fechar todos os buracos. Todinhos. Não deixar um aberto ou funcionando, que seja. Todos o buracos fechados. Uma mulher sem buracos, isso seria uma vingança. Ele ia ter uma mulher sem buracos. Não quer uma mulher sem visão, sem voz, sem alma própria? Que tenha uma mulher sem buracos.Ela ia ser uma mulher sem buracos. Sem nenhum, um que fosse. Não ia poder entrar nela, atingir a ela, sequer tocar algo mais que uma superfície sem buracos. Impenetrável. Invulnerável. E ele poderia gritar, socar, tentar arrombar. Não ia entrar. Não haveria buracos.Ia ser bom. Bom saber que ele perderia, no fim.
Ele dorme. Profundamente. Não precisa ser a mulher sem buracos agora. Relaxa o corpo, desenrola-se da bola que fizera de si mesma. Os braços doem, o pescoço também. Estica as pernas com mais cuidado, para longe do som e do cheiro. Desde muito, aprendera a usar o pouco espaço que lhe cabe na cama. Desde muito, aprendera a ser, como as plantas no deserto, ou bichos no Ártico, a viver com o mínimo. Se não viver, sobreviver. Armazenar, guardar dentro de si, toda a vida. Parecer seca, árida, misturada com a paisagem. Enganar o predador, suplantar as intempéries, parecendo não ter o que cobiçarem tirar dela.
Ouvira sobre os bichos, um dia, na TV. Na TV que ele assistia, cego, a seu lado. Sempre cego. O ronco é alto, como sempre. A respiração custosa, arfante, mexe o corpo que mexe o colchão. Expulso o sono, a cama a repulsa. Senta-se. Devagar. Em silêncio. Busca a chinela no pé da cama, com o pé. O chão é frio. Devagar. Levanta-se e caminha no escuro do quarto. Conhece seu cativeiro. Dois passos até o pé da cama. Do seu lado da cama, até à janela, nove passos. À esquerda, o baú do enxoval. Há o fecho, quebrado, que lhe arranha a perna, tantas vezes. A janela. Agora pode ouvir a cortina de voile, murmurando com o vento. Sente o cheiro do quintal, cheiro de noite e de ar frio. Inspira fundo, muitas vezes. As narinas se abrem, o peito se dilata, os ouvidos se banham com o silêncio e a pureza da hora. Abre os olhos. Ela veio.
Se alguém a visse, ali, parada na janela, certamente iria se perguntar o que estaria fazendo aquele vulto, imóvel. Não conseguiria distinguir, nas sombras, a chegada da outra mulher.
A outra mulher só chega à noite, no silêncio. Chega colorida, vibrante, luminosa. Chega abusada, com roupas de muitas cores e língua solta. A outra mulher ri. A outra mulher não conta os passos. Anda despreocupada, empurra o que lhe vai à frente, ou se demora, curiosa em conhecer o que lhe vem de encontro. A outra mulher tem querer. A outra mulher escolhe seu homem. Não tem o terror de ficar só, sem guia. A outra mulher joga fora baús e homens que machucam. A outra mulher chega com a promessa de, um dia, vir de dia.
Não sabe se gosta ou detesta a outra mulher. A outra mulher caminha pela vida, não fica presa como ela, a ele, a casa, à cama. A outra mulher não se encolhe, se abre, se oferta, se entrega, escolhe. A outra mulher geme e fala de gozo. Para ela, logo para ela, a outra mulher fala de gozar e parir e criar. Melhor ser a mulher sem buracos. A mulher sem buracos não vê mais do que ela. Não sente mais que ela. Ela inveja a outra mulher. Mas não consegue deixar de se encantar com o que faz a outra mulher.
O ronco diminui. O sono menos ruidoso avisa que ele vai acordar. A outra mulher se foi. A outra mulher nunca fica. Sempre vem na noite. Sempre vai quando as sombras se vão. Ela devia mandar a outra mulher embora para sempre. Nunca mais esperar por ela. Chamar por ela. Não ansiar pela vinda da outra mulher. Não sabe porque chama e espera a outra mulher e porquê as noites em que ela não aparece se mantém negras até sua volta.
Não. Ela sabe. Ela sabe porque sempre espera pela outra mulher. Porque a outra mulher promete que, um dia, vem de dia. E nesse dia, talvez, possa deixar de ser a outra mulher.

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domingo, março 07, 2004

CONTO-TE UM CONTO




Conto-te meus contos para contar-te de mim.
Conto a ti os segredos que não lembro.
Conto-te também das palavras que não sei dizer.
Conto-te de todas as mulheres
que me estranho em ser.
Quero que meus contos contem
as histórias que vivi
e aquelas que inventei para ti.
Por isso conto-te um conto.
Que vale um conto
sem alguém a quem contar?
Conto-te e me reconto.
Reencontro-me ao contar-te.
Quero que te sintas grande,
com a dádiva.
Não tenhas medo de meus presentes.
Só os fortes sabem receber
sem sucumbir.
Conto-te meus contos para contar-te de mim.
Meus contos são meu canto.
Escuta essa canção.

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sexta-feira, março 05, 2004

SER ROSA



Ela voltou a sangrar depois que ele a beijou. Acordou sentindo na boca as marcas do encontro, a pele arranhada do queixo, o freio da língua dolorido. Sentou no vaso, meio sonada, meio sonhada, olhos fechados, empurrando mecanicamente os panos de si, respondendo à urgência das águas da noite.
Tateou em busca do papel para enxugar-se e foi aí a surpresa de sentir-se úmida. Abriu os olhos e encontrou. Estava lá, a nódoa avermelhada na calcinha. Riu do achado e olhou de novo para a cor estampada no pano. Vermelha, como uma rosa, a mancha de sangue na calcinha.
A água no chuveiro termina o despertar. O dia vai ser cheio. Pela primeira vez em tempos, se demora no banho. É bom. Sentir a água na pele, afagar o corpo com a bucha, passar a mão por si, com carinho, sem desleixo nem pressa. Recompensa com cuidados, ai que alívio, o estar viva e ser fêmea. Voltou a sangrar. Depois de dois meses, voltou a sangrar ela pensa, os pensamentos escorrendo com a água:
- Bem vinda! Se abolete, fique por uns dias, faça de conta que a casa é sua, de novo! Faço cama de branco algodão, aplaco as cólicas com remédio importado, não reclamo do inchaço nem do desconforto, eu prometo. Trato-lhe melhor, sem queixas, vai ver, fica, que ainda te quero junto a mim.
Sangrava tão pouco estes dias. Estes dias, uma ova. Já há tempos vinha sangrando pouco. Sangrava pouco, chorava pouco, suava pouco. Mas também, o que não estava pouco em sua vida? Nunca fora de muitos humores, verdade seja dita, mas nestes dias, o pouco era muito pouco. Tão pouco que se pensara seca.
Alma seca, sim. Poetas dizem isso, gente dramática também. Assim como existe olho seco. Lembra, outra surpresa, do médico lhe dizendo que não tinha conjuntivite, mas ressecamento da lágrima. Seu corpo bem que lhe avisara do pouco, mas pouco lhe dera atenção. Precisara secar para notar.
- Ora veja, quem diria, corpo vivo seca, seca sim, saiba a senhora, fica seco, fica duro, fica um cacto.
Imagem horrível a do cacto. Nem era nesses cactos bonitinhos que pensara, de vasinho de barro, o verde da planta realçado na brancura do leito de pedrinhas, não senhora, cacto de deserto mesmo, solitário, árido, estéril, ressequido.
-Não quero ser cacto.
São bonitos. São exóticos. Resistentes.
- Dane-se! Cacto não. Flor. Quero ser flor. Não cacto nem flor de cacto, mas flor. Posso até ser rosa, não gosto muito, rosa é boba, convencional. Mas se rosa for, que seja rosa rebelde, como a que cresce num jardim sem cuidado, ou rosa no cabelo da cigana. Ou então, ou então rosa, isso, rosa entre os dentes de um dançarino de flamengo, ah, essa rosa eu quero ser.
Não entende bem o que houve. Algo houve. No corpo, em si? Coincidência? Não amava o homem, isso não. Nem paixão era também. Amou sim, reconhecer seu corpo no encontro com o corpo dele. Amou sentir o calor que supunha extinto, a agitação violenta das vísceras a escorrer lava, encharcando-lhe as coxas, a doer-lhe o ventre. Amou sentir-se viva. Fez-lhe bem sentir-se flor, abrir-se flor, como uma rosa, de querer e vontade. Rosa de desejo, de rosa boca e rosa vulva. Rosa corada, rosa molhada, rosa como a rubra rosa da calcinha.
Era rosa.

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quinta-feira, março 04, 2004

A leitura dos jornais e revistas tem me deixado de estômago embrulhado.
Político virou sinônimo de ladrão, no Brasil. E o que é pior, estamos quase achando isso normal. Chegamos a ponto de usar frases como “ele rouba, mas faz” como argumento para votar em alguém.
Não nos surpreendemos com os Waldomiros da vida, o secretário de segurança do Rio, sr Garotinho que anuncia, com orgulho que apenas 84 pessoas morreram neste Carnaval (!!!!!!!!!!!!!!!!).
Fotos de traficantes são estampadas nas capas das principais revistas do país, dando-lhes notoriedade e veleidades de herói. Manchetes nos jornais apontam a impunidade e a falência do sistema penitenciário brasileiro.
Defrontamo-nos com o fato de que as condições mais básicas de convivência social estão profundamente ameaçadas e nos sentimos paralisados, como se nada pudesse deter esse processo.
Os gregos têm uma palavra – éthos - que significa morada, maneira de ser. Ética tem sua origem neste termo. Entendo ética como o modo como lidamos com aquele pedaço de mundo que é a nossa morada, o nosso lugar nele. A ética fala da atitude que temos em relação a esse lugar. Fala sobre os princípios e as regras que usamos para poder viver e conviver com outros homens.
Ética é diferente de moral. A moral, em geral, está ligada um grupo social ou a uma época ou a uma localidade. A moral pode ser muito específica, variando de cultura para cultura ou dependendo de uma crença religiosa. É algo que é apresentado pelo meio vigente, construído de fora para dentro.
Já a ética é algo que é criado de dentro para fora, uma construção subjetiva, construída a partir dos relacionamentos estabelecidos e que busca permitir o convívio entre as pessoas, por mais diferentes que elas sejam. Ética é uma atitude, não uma idéia ou conceito e pode ser traduzida de uma forma mais simples por: Responsabilidade pelo outro.
A leitura dos jornais mostra uma sociedade cuja organização promove, a cada dia, exemplos gritantes do que NÃO é ético. Desigualdade não é ética. O enriquecimento ilícito e a impunidade não são éticos, assim como promessas políticas eleitoreiras não o são.
Habitar em condições infra-humanas, ser incapaz de oferecer uma contribuição ao meio em que vive, não ter um trabalho que seja considerado digno, nada disso é ético.
A falta de ética produz a humilhação e a negação do direito de existir. Ela impede o reconhecimento pelo outro, que é uma necessidade fundamental de qualquer pessoa - ser reconhecida em sua singularidade – isto é, o direito de alguém poder dizer: Sou o que sou e como sou e tenho valor sendo assim.
Aqueles que mais sofrem com a falta de ética são os que menos podem reagir a ela - o pobre, o doente, a criança, o velho, aquele que possui uma dificuldade especial ou que, em algo, é diferente do usual e foge à norma convencionada. Eles pedem, necessitam que sua presença/existência seja reconhecida e que suas necessidades sejam legitimadas.
Não somos espectadores da vida. Não podemos acreditar que nada pode ser feito, porque há tantos que são desonestos ou anti-éticos. Somos todos co-responsáveis.

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terça-feira, março 02, 2004

FRAGMENTOS DE UM DIA

o amor da gente é como um grão,
Uma semente de ilusão
Tem que morrer prá germinar,
Plantar n´algum lugar
Ressuscitar no chão, nossa semeadura.
(Drão – Gilberto Gil)




A vida é cheia de acontecimentos corriqueiros, mínimos, sem brilho ofuscante ou rufar de tambores que anunciem sua chegada. Corriqueiros sim, mas não menos preciosos.
O amigo que chega e nos faz um afago, o céu surpreendentemente estrelado após o anúncio de chuva, os versos que sobressaem na canção e vão direto ao coração. O riso franco na liberdade de rir dos próprios erros, a lembrança do olhar do amante, o cheiro do pão quente, feito em casa. Um bebê na rua que nos sorri, a foto encontrada no meio do livro, o completar de uma tarefa.
O olhar que se distrai de si mesmo e descobre, num repente, a beleza do dia e que percebe então, que está menos triste.


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A gente não sente falta do que não conhece. Só reconhece quem conhece, eu diria.
O que se sabe, ou sente, é que algo devia estar ali, mas não está. Só depois, quando e se um dia temos aquilo que nos faltou, é que percebemos que o que sentíamos há tanto tempo era a presença da ausência.

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segunda-feira, março 01, 2004

ESTRANHOS FRUTOS

Meu pai adorava música americana. Nos fins de semana, ele punha discos na vitrola, sim, eram discos, grandes discos pretos de vinil e, em sua poltrona predileta, lia os jornais com calma. Eu deitava-me junto ao grande móvel na sala e ouvia, quieta e silenciosa, aqueles sons estranhos, diferentes de minha língua e da melodia habitual ouvida nos rádios da empregada: Cole Porter, Gerswhin, a música das “big bands” - Tommy Dorsey, Glenn Miller, Louis Armstrong e o piano de Duke Ellington, como me lembra meu professor de jazz.
O tempo passou. Por um bom tempo, outras melodias e outros ritmos me encantaram enquanto me desencantava de meus ídolos da infância e descobria as pessoas no mundo.
Mais tarde conheci a voz singular de Nina Simone que me apresentou ao universo das grandes vozes femininas. Ella Fitzgerald, Etta James, Tracy Chapman e Billie Holiday, entre muitas outras, expressam, de forma pungente, amor, paixão, solidão e perda, e também cantam sobre a injustiça e consciência social. Mulheres que cantam sobre o mundo e sobre o humano no mundo.
Há uma canção, em especial: Strange Fruit. Não foi composta por Billie, como muitos pensam, mas por Abel Meeropol, um professor judeu de Nova Iorque, estarrecido com os sucessivos lichamentos ocorridos no Sul dos Estados Unidos. Eles se conheceram por intermédio do gerente do Café Society, bar de esquerda no Village novaiorquino, que, ao ouvir a música em uma manifestação sindical, promoveu o encontro entre o autor e a cantora. A gravadora de Billie recusa-se a gravar a canção, mas Billie insiste, gravando-a em outro selo, tornando-a uma de suas marcas pessoais até sua morte em 1959.


Rubin Stacy, lynched in Fort Lauderdale on 19th July, 1935

Strange Fruit
Southern trees bear a strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black body swinging in the Southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant South,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolia sweet and fresh,
And the sudden smell of burning flesh!
Here is a fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for a tree to drop,
Here is a strange and bitter crop.


Os jornais de hoje, setenta e cinco anos depois, estampam execuções, revoltas, ódio, intolerância e mortandade no Rio, Porto Príncipe, Caracas, Jerusalém. As árvores do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste ainda geram estranhos frutos, com sangue nas folhas e sangue na raiz.

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