Clube das Almas Inquietas

Bem vindo todo aquele que quer mais do que o cotidiano pode oferecer

quinta-feira, janeiro 29, 2004


Errar é humano, mas faz você se sentir divino.
Mae West

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quarta-feira, janeiro 28, 2004

O barulho da britadeira
irrita, atravessa vidros fechados.
Caminhões em manobra
atravancam a passagem
impedem o seguir.
A escavadeira recolhe a brita
arrancando pedaços mal seguros
junto com o resto já partido.
E o barulho surdo, alto,
denunciador da quebração
em volta,
continua persistente.
Quando o latejar da máquina
se confunde
com o que sinto,
me pergunto:
-Onde é este buraco, meu Deus?
Na rua, ou em mim?


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terça-feira, janeiro 27, 2004

ENIGMA

Todo mundo tem, ao menos, um enigma na vida.
Segredos de si mesmo, moldados em tempos primevos, originados de uma questão, de perguntas sem resposta. A busca desta ou destas respostas se traduz numa canção tema, uma melodia singular, algumas vezes tocada fortissimo, outras vezes tocada docemente, de forma quase imperceptível.
Falo todo mundo porquê assim o sinto. Sim, tenho a pretensão de poder falar de mais do que de mim. Falar de mim, não me bastaria. Não sei falar de mim sem dirigir-me a ti, sem incluir-te em mim.Sei, que o que quer que eu fale, dará apenas uma imagem de mim - produzirá uma imagem de mim vista por ti.
Para formular-me em perguntas preciso de sinais e olhares e palavras, aquém e além de mim.
Estou e não estou só quando toca a música que dedilha meus enigmas - de fora dela vem outros sons e neles me desdobro em infinitas variações.

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segunda-feira, janeiro 26, 2004




Foi passear de barco.
O dia, glorioso, possuía uma luminosidade quase insuportável. Impossível não sentir a grandeza da paisagem onde cada detalhe era revestido de um brilho ofuscante.
A vegetação das margens avistada cada vez mais distante, os tons de verde, realçados por roxos, vermelhos e amarelos das flores salpicadas nas encostas, os muitos azuis da água espelhados no céu sem nuvens dava à cena uma beleza impressionista, de perder o fôlego. Era como se a paisagem exuberante banhasse em luz, vida e calor até mesmo os recantos mais sombrios da alma, lá, onde os medos antigos e as aflições sem nome se refugiam.
A parada foi em uma das centenas de ilhas da região. Selvagem, pequenina, apenas uma cabana de pescador denunciava a presença humana no lugar. A praia de areia clara e a sombra das árvores junto à margem convidavam para o mergulho e o banho, o cristalino das águas revelando dezenas de peixinhos, fugidios e velozes, assustados pelas presenças anômalas.
Afastando-se do grupo, ela caminha até a ponta da praia, pouca coisa, uns cem metros, era tão pequena a ilha, sentando-se, meio escondida, entre as pedras que formavam uma piscina natural.
Os peixes, apaziguados pela quietude da figura humana, absolveram sua intrusão e começaram a se aproximar. Alguns pareciam pequenas zebras, rajados em listas negras. Outros, em azuis e verdes, refletiam nas escamas a cor da água. Um outro, maior, todo em prata, exibia uma imensa pinta preta abaixo do olho.
Ela sorri para ele, acusando-o de coquete, lembrada dos sinais de beleza usados na corte francesa. Cortesão ou cortesã, quem sabe distinguir o sexo dos peixes, de alva peruca e rosto caiado, negra pinta a atrair olhares, pura sedução. Outros, ainda, totalmente azuis, de um cobalto forte, cor de noite que chega de repente, noite de verão.
Uma estrela do mar, rápida, desliza pelo fundo de areia, surpreendendo a mulher ao passar sob suas pernas, fazendo-lhe susto e cócegas.
Ela ri, espalhando o riso pelo rosto e se inclina para frente, abraçando a água, pedindo-lhe um colo cálido e ancestral. Desliza pela areia morna, na margem suave e se deixa ficar ali, um bom tempo, perdida em si mesma.
Na volta do passeio, busca a proa como lugar, versão em carne de tantas figuras de mulher esculpidas em barcos. Imóvel, sente com todo o corpo o vento, a água, o sal e a velocidade. Olha para a luz, para a paisagem, para o céu. Tenta beber, respirar, gravar na memória, todas as sensações - cheiros, cores, contrastes – armazenando, para os tempos difíceis e as longas jornadas, aquelas impressões de beleza e completude.

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quinta-feira, janeiro 22, 2004



cortesia de Dona Lagartixa do Almas Penadas


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quarta-feira, janeiro 21, 2004

Wendy se encarregava de pôr Jane para dormir. Era esta a ocasião para contar histórias. Jane inventara de puxar o lençol e com ele cobrir a cabeça dela e de sua mãe, fazendo assim como uma tenda. E em meio à horrível escuridão sussurrar:
- O que é que você está vendo agora?
- Parece que hoje não estou vendo nada – respondeu Wendy, com a impressão de que se Naná estivesse ali faria objeção a continuar a conversa.
- Está vendo sim. Vê o tempo quando você era uma menininha.
- Mas isto foi há muito tempo atrás, querida. Meu Deus, como o tempo voa!
- O tempo voa – pergunta a esperta menina – do mesmo jeito que você voava quando era uma meninininha?

Peter Pan _ J. M. Barrie. São Paulo, Hemus Editora, s.d.

Estamos sempre implicados com nossa história, nossa infância. Por mais que o tempo passe ou voe, ela acaba nunca sendo deixada totalmente para trás.
Persiste nos enigmas, nas perguntas sem respostas, no que não foi compreendido ou verdadeiramente experienciado.
Enigmas que ficam alojados em algum lugar da mente, meio "esquecidos", no escuro mais escuro, até que algo os revele novamente.

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terça-feira, janeiro 20, 2004

Desde ontem me atrapalho com as palavras, as imagens. Nada me satisfaz, alma mais inquieta do que nunca. O que escrevo não é o que desejo, o que desejo não é o que desejo e o que não desejo não é tão indesejável assim e o que não escrevo, ah, esse sim, eu quero.
O que eu sinto, é tanto o que eu sinto, e mesmo se falasse um tanto desse tanto, ainda assim não ia ser muito.
Lembrei de Adélia Prado e aí entendi.
É que sou mulher.

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
- Vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo.
Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.
Adélia Prado

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segunda-feira, janeiro 19, 2004

O tempo do pensamento mágico

 Que força pode ter o pensamento lógico numa terra em que predomina o pensamento mágico?
Érico Veríssimo



Tudo começou quando me lembrei de uma grande paixão. O que foi vivido foi mágico, como se destinado a mim desde o princípio dos tempos, como se todos os acontecimentos anteriores fossem apenas um prólogo para aquele acontecimento fundante de uma existência.
Exagerado, com certeza, mas como descrever uma grande paixão sem exagero e exacerbação? A terra do pensamento mágico é a terra da paixão e onde lógica, senso de realidade e pragmatismo simplesmente sucumbem ao esplendor do que é vivido.
Justamente por isso, o destino das paixões é apenas um, embora sejam muitos os caminhos possíveis até ele. O destino da paixão é seu fim. Não há lamento na constatação, apenas o reconhecimento da qualidade finita que a intensidade e a magia do sentimento exigem.
O apaixonado diria não a minha, a minha paixão não terá fim., minha paixão será eterna. O que é finito, o é para mortais e humanos, não para mim, nem para aquele por quem me apaixonei.
Em vão. A paixão finda, transformada em amor, hábito ou esquecimento. Esté é seu destino. Aprendemos que o desejo, por mais desejado e intenso que seja, não é soberano.
Como aceitar viver uma experiência dessa grandeza, se a dor que advém de sua perda pode ser igualmente grandiosa?
Viver sob o pensamento mágico é viver permanentemente à mercê do inatingível, sujeitos às boas graças dos detentores deste poder mágico, situação que, não por acaso, nos remete à infância e à dependência quase que total dos pais ou cuidadores.
No entanto, viver só sob a lógica é viver de forma pobre e mesquinha.
As paixões findam e sobrevivemos à descoberta de que não há mágica. Mais que isso, contiuamos a viver e até nos apaixonamos de novo.
Como acontece? Não sei.
Um dia acordamos e percebemos o que já estava lá. O que se passou, passou. Não levou consigo mais do que o acontecido, despiu-se das crenças e explicações e repousa numa única certeza.
Aquilo eu vivi. Como ainda vivo, acredito que viverei outra vez.

O pensamento mágico transmuta-se no encanto pela vida.

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sábado, janeiro 17, 2004

A LUCIDEZ PERIGOSA DE CLARICE LISPECTOR



Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.

Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade -
essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.

(Poemas de Clarice Lispector arranjados pelo padre Antônio Damásio )

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sexta-feira, janeiro 16, 2004


Imagem copiada de There’s only Alice Thanks, Lebre.



Há dias em que a gente acorda e não gosta do que pensa sobre o mundo.
Não é de minha natureza ter um olhar cínico. Prefiro o humor.

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quarta-feira, janeiro 14, 2004

BLOGOSFERA E DEVANEIOS




O Dennis do Caderno Mágico , comentou, dia desses, a respeito dos descompensados afetivos que povoam os sites. Ele menciona, inclusive, um trecho de um artigo da Lucia Guimarães (não consegui acessar o texto, nem por decreto). Nesse trecho ela define os blogs como “trenzinhos do ego”. Não pretendo discordar da Lúcia . Blogs se prestam muito bem para trenzinhos e até porta- aviões de ego.
Existe tudo isso? Claro que existe. Só que o belo e o criativo não são exceções. Tenho descoberto maravilhas, textos belíssimos, imagens fantásticas e literatura da mais alta qualidade.
A proporção é a mesmo que no dia a dia real. O virtual não é um campo estranho que aliena o sujeito de si mesmo, nem um mundo falso ou mentiroso; ou o é, tanto quanto o cotidiano pode ser. Independente de estarmos diante de uma tela de computador, o que surge ali é o modo particular de como aquela pessoa compartilha uma realidade. Se ela vai ser exibicionista, narcísica, enganadora, divertida, inteligente, culta, articulada, verdadeira, esse vai ser seu “modus operandi”, seu jeito de lidar com a vida.
Tanto no virtual como no real, apenas a continuidade, que vulgarmente conhecemos como "um dia depois do outro", vai trazer à tona a verdade e a mentira, o real e o ilusório, embora reconheça, como comentei com Maxou , que nada melhor que a distância para embelezar as pessoas, mas... c’est la vie. Deixemos que o tempo se encarregue de revelar o que há para ser revelado.
Tudo isso para contar sobre duas descobertas recentes. O blog da Chris e mais um kafkiano para fazer companhia à Miss Kafka: o Kafka em Belo Horizonte .
É do Kafka de BH que reproduzo as normas básicas para um bom devaneador, traço comum em almas inquietas:

Em A enciclopédia dos pequenos prazeres, livro lançado ontem na Sociedade Queneau de Belo Horizonte, Severus Cândido chama a atenção para as artes do devaneio e enumera cinco modos fundamentais para o bom devaneador: 1) Construir azuis com os olhos fechados; 2) Investigar vôos de pássaros imaginários; 3) Escutar silêncios; 4) Pastorear nuvens; 5) Ouvir os tratados filosóficos que os anjos ensinam para os gatos.

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terça-feira, janeiro 13, 2004



Ontem assisti a um show belíssimo de jazz.
Ao apresentar esta música a cantora diz:
- “Para mim, esta canção é uma prece”.
Para mim também.

THE MAN I LOVE

Written by George Gershwin and Ira Gershwin ©1924

Someday he'll come along
The man I love
And he'll be big and strong
The man I love
And when he comes my way
I'll do my best to make him stay

He'll look at me and smile
I'll understand
And in a little while
He'll take my hand
And though it seems absurd
I know we both won't say a word

Maybe I shall meet him
Sunday, maybe Monday, maybe not
Still I'm sure to meet him one day
Maybe Tuesday will be my good news day

He'll build a little home
Just meant for two
From which I'd never roam
Who would, would you?

And so all else above
I'm waiting for the man I love

Maybe I shall meet him
Sunday, maybe Monday, maybe not
Still I'm sure to meet him one day
Maybe Tuesday will be my good news day

He'll build a little home
Just meant for two
From which I'd never roam
Who would, would you?

And so all else above
I'm waiting for the man I love


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segunda-feira, janeiro 12, 2004


-Existem boas meninas em todos os gêneros?
-Elementar, meu caro Watson.




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BOAS MENINAS VÃO PARA O CÉU?

Matutei um bocado enquanto caminhava junto ao mar. Bem que já tinha percebido que a gente só filosofa quando a vida fica meio atrapalhada de se viver. As aflições do dia a dia e do convívio são, em geral, as musas inspiradoras para reflexões metafísicas.
Pensava a respeito de alguns acontecimentos, quando uma frase surgiu em minha cabeça:
Boas meninas podem ir para o céu, mas vivem no inferno.
Dez entre dez boas meninas alguma vez na vida já exclamaram, magoadas:
-Isso não é justo!
Lição especial para boas meninas:
A vida não é justa. Justiça não é uma característica obrigatória da vida. É um fato que nada tem a ver com a vida ser boa ou má, ou se somos bons ou maus. Pode haver justiça na vida. Ou não.
O sentimento de ter sido injustiçado não é nada agradável, não mesmo. O ponto é que alguém nos feriu. Tomou ou não nos concedeu algo a que supúnhamos ter direito. Respeito, consideração, lealdade, amor, amizade, a lista é longa. Agiu de uma forma que colocou em cheque nossas idealizações mostrando, de forma inequívoca, que nossa expectativa de perfeição não foi atingida nem correspondida.
Como a gente age em relação a isso é que vai fazer a diferença. É incrível como é difícil perceber que o outro pode e faz exatamente aquilo que pode. Não poder no sentido de poder ou autoridade, mas poder no sentido de ser capaz, de limite de possibilidades. E isso nada tem a ver com bondade ou maldade, com justiça ou injustiça.
Coisas boas acontecem para pessoas más e coisas ruins acontecem para pessoas boas. Só que quando algo de ruim acontece para uma boa menina, é uma tragédia.
Boas meninas caem no inferno, numa dor misturada com vergonha, mortificação, zanga, vórtex de emoção, percebida ou não, caldeirão de fúria cega e implacável. “Como podem fazer isso comigo?” é a pergunta inevitável.
Há uma subdivisão na categoria boas meninas: as furiosas e as mártires.
As furiosas têm a vantagem de perceber e sentir claramente a raiva. Claro que a raiva é raiva santa, tipo americano paladino da democracia contra o resto do mundo indigno, Cruzados na Idade Média, Arianos a favor da pureza da raça, caçadores de bruxas ( as más meninas), esse tipo de coisa.
"Levou-me ao inferno? Levo-te junto comigo, olho por olho, dente por dente, tornaste pó minha imagem idealizada refletida nos teus olhos, meu espelho. Precisas ser perfeito, em tudo, para que eu me sinta perfeita!"
No caso das mártires, os caminhos são mais tortuosos, indiretos. Boas meninas têm um certo quê de “me bate que eu gosto”. Quanto pior as tratam, mais chances de provarem ao outro e ao mundo como são boas. Precisam que exista alguém mau que lhes garanta o céu. O lugar de mártir lhes cai como uma luva ao permitir que um outro se instale no lugar de algoz.
Boas meninas se acham ótimas. Na verdade, não se acham muito não, mas fazem um esforço grande em parecer, exigindo que o outro lhes seja perfeito para não correrem o risco de ter sua auto-imagem arranhada. Boas meninas são como a Rainha de Copas com suas constantes ordens de decapitação _ exímias em bradar a torto e a direito:- Mau! Mau! Mau!
Na verdade, para boas meninas, mais importante do que ser uma menina boa é parecer uma boa menina. É aí que começa o inferno delas. Viver o tormento constante de perder uma bondade que não lhe pertence em vida.
Bondade assim, só no céu.

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sexta-feira, janeiro 09, 2004


Somos todos estranhos. Oscilamos tanto. Ansiamos e receamos ao mesmo tempo.
Queremos, por um lado, o conforto da acomodação, cismando achar que uma
vida sem complicações nos basta. Vida de semitons e de cores mornas, no
máximo, previsível e tão vazia.

Borboletas têm a capacidade extraordinária de produzir alegria - desprovida de razão e de sentido- indiferentes ao que acontece em volta. Coloridas, frágeis, luminosas, vivas, dançam, pagãmente livres, sem parecer ter direção, com um brilho que se espelha no olhar.
Quando elas voam adiante de nós, paramos - deslumbrados por essa alegria repentina que elas provocam - mas temerosos também, de num gesto brusco, assustá-las e elas se forem, tão rapidamente quanto vieram.
O que fazer com esse anseio que surge, de repente?
Porquê esse desejar por algo que faça parecer, de novo, que se tem borboletas na barriga, esse querer por algo que tire os alfinetes de amargura que as prendem, quietas, no fundo?


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Hoje, caminhando pela trilha entre a pedra e o mar, o tempo estava feio, enfarruscado, mau humorado mesmo. A vista, no entanto, era tão sutilmente linda que eu não me contive:
Beijei a paisagem.

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quinta-feira, janeiro 08, 2004

NOVAS VARIAÇÕES SOBRE UMA AULA DE DANÇA

Quero agradecer à Carolina e Sérgio por terem salvo este e outros textos do lixo e do esquecimento. Foi um surperpresente para mim, obrigada aos dois.
Ah, o texto é parte de um e-mail a Sérgio.


A capacidade de confiar nunca foi o meu forte. Agora é que me dei conta que o que digo agora tem tudo a ver com a aula de ontem. Devo ter contado que a cada aula eu danço com um parceiro diferente. Fiz questão disso. Deve ser para contrabalançar minha parceria única de muitos anos.

Meu cavalheiro era soberbo! Um “guerreiro massai”, com um sorriso, uma segurança e uma calma serenas que, pela firmeza, dissuadiram minha resistência inicial em ser conduzida.

Logo no início da música, um samba, ele fez uma variação no passo. Eu, controle remoto afinado na estereotipia do passo aprendido, avanço no passo seguinte. Ele me segura com firmeza e não dá passo nenhum. Fico desconcertada, nada digo, preocupada em acertar o maldito passo novo, não errar o ritmo e contar os volteios mentalmente.

Você há de convir que isso é too much para uma dançarina incipiente, embora esforçada. Eu odeio errar, odeio fazer coisas que não domino muito bem. Claro, meu repertório, necessariamente, fica limitado, mas para uma perfeccionista controladora isso é mero detalhe...

Mais uma vez a situação se repete. Começa a música, damos os passos iniciais e ele estanca como uma mula diante do precipício.
Eu o olho interrogativamente e ele me diz com uma calma olímpica:
“- O cavalheiro é quem conduz a dama. Você aceitou dançar comigo, não vou dar um passo se você não deixar que eu a guie. Aproveite, relaxe, quem tem que saber o passo sou eu. Se você consentir, eu a levo.”

Tudo isso foi dito de uma forma extraordinária. Não havia nada de arrogante ou machista naquilo. Apenas o fato de que era verdade. E de que minha permissão era importante para aquilo que estávamos fazendo fosse mais bonito e harmonioso.
Consenti.

A aula transcorreu como se durasse dois minutos. Dançamos o soltinho, base para o twist e todos os ritmos mais velozes, boleros, tudo. Meu parceiro dava umas paradinhas, mudava os passos, repetia alguns, inovava outros e eu atenta ao movimento dele, mas de uma forma diferente, atenta em acompanhá-lo, não em obedecer a algum esquema pré-determinado.
Dançamos sem parar e, a cada movimento inusitado, ele me olhava sorridente e eu respondia, sorrindo com cumplicidade a isso. Passou a ser divertido, não penoso ou esforçado.

Ao final ele me diz: “- Não preciso nem dizer, não é? Foi muito bem...”
Saí da aula com uma leveza e um bem-estar imensos, livre da carga e do peso daqueles dias tão carregados.
No caminho de volta, percebi que estava feliz. Olha que coisa mais doida. Eu sempre achei que permitir era me submeter, ser subjugada. E meu parceiro, de quem nem sei o nome, usa uma palavra que me pareceu abrir uma outra compreensão disso, muito além da dança:
Consentir. Sentir com. No nosso caso, sentir a música, o ritmo, a delícia que é ajustar o nosso passo ao passo do outro.

Sei que você vai dizer que é minha imaginação pra lá de fértil, que coloca tudo isso numa aula de dança de salão. Não me importa. Acho que tem sido uma das aulas mais importantes que já tive na vida. Aprender a consentir é uma tremenda lição.

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terça-feira, janeiro 06, 2004

A LÓGICA DO PIOR ou IRREMEDIAVELMENTE OTIMISTA

Estava lendo o Vamos Lixar Tudo do Maxou.
Ele comentou que havia gostado da apologia feita pelo Manuel no O Sexo dos Anjos . ( Estou refazendo os caminho linkados para quem quiser fazer este percurso também, bem ao estilo João e a trilha de bolinhas de pão).
Lá fui eu ler o Manuel. O título do post é a Apologia do Pessimismo de 05/01/04.
O Manuel comenta, em uma altura do texto:
"Ser pessimista tem sérias vantagens. Julgo que alguns nunca pensaram nisso.
Quando algo de bom acontece, contra todas as nossas expectativas, sentimos a alegria extraordinária da sucesso imprevisto.
Quando os nossos prognósticos se verificam, não nos apanham desprevenidos: É mau, mas já estávamos à  espera. Resistimos melhor."

Mais adiante, surge , na minha opinião, o x da questão:
"É certo que, por vezes, o positivo acontece. Nessa altura murmuramos com gosto – “desta vez enganei-me; ainda bem!”
Geralmente ocorre o que tínhamos previsto. Perante isso sentimos uma amargura a que já estamos habituados, mas temos uma consolação – “como vêem, eu tinha razão!”
Confesso que ter sempre razão às tantas cansa."

Manuel então faz a apologia do pensar o pior.
E qual seria a vantagem? É de que assim ele sabe. Sabendo, torna-se um preditor da vida. Onisciente a respeito da própria existência. Dói menos saber?
A premissa que o Manuel usa é que sim, dói menos saber. Assim o fazendo, prevendo, ele se desaponta menos.
O "eu sabia!" funciona como anestésico?
Para mim, esta premissa até poderia ser verdadeira se verdadeira fosse uma outra premissa, anterior.
A de que seria humanamente possível Manuel prever os acontecimentos de sua vida.
Clement Rosset, um filósofo contemporâneo, escreveu uma livro fantástico sobre o assunto. Aliás, filosofia é para isso. Fazer perguntas complicadas sobre fatos banais.
A discussão que temos aqui não é nem um pouco original, mas serve bem para uns dedos de prosa.
É bem antigo este desejo de poder controlar os acontecimentos através de sua predição.
A ciência ocidental reinou determinista por muito tempo até que a física quântica nos mostrou que o conhecimento total, a previsibilidade, é um sonho.
É a gente tentar passar por sabido aquilo que não pode ser sabido. É tentar transformar o acaso em certezas para evitar sofrer.
Acho é que a gente não evita o sofrimento e ainda acaba não vivendo.

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DIA DE REIS



Hoje é Dia de Reis. Dia de desmontar a árvore, fazer um bolo de frutas e compartilhar graças.
Quem sabe de cor ( sem consultar o Google) o nome dos Tres Reis Magos?

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segunda-feira, janeiro 05, 2004


Esconde-esconde era minha brincadeira predileta nas noites quentes de verão dos janeiros de muitos anos atrás. Era mais especial ainda quando acontecia num terreno anexo a um prédio em frente à casa, na pequena rua do bairro. Lá, soberana, reinava uma ampla quadra de futebol de cimento, franjada por uma área de terra, pontilhada por árvores diversas.
O azul tinto do céu a escurecer tardio, o som das cigarras embriagadas de calor, o medo provocado pelo vôo rasante dos morcegos junto às bananeiras misturado ao cheiro de nossos corpos suados, tudo isso transformava aquele lugar antes habitual, em terreno desconhecido, perfeito para o jogo, pleno de recantos e sombras.
Era para elas, para as sombras, que eu corria, à procura de uma árvore, uma porta, algum anteparo qualquer. Encontrava um refúgio e, semi-oculta a princípio, observava o movimento em volta, atenta ao numerar monocórdio cantado alto antes do jogo começar.
Brincadeira iniciada, a emoção da procura. O coração batendo mais forte ante a aproximação de alguém, a respiração suspensa, querendo ser procurada, não querendo ser encontrada, ao menos logo não, só depois, só mais tarde, esperando e tentando traduzir os ruídos em volta que anunciassem o sucesso de meu esconderijo ou seu fracasso e minha revelação.
Tudo era excitante nesse jogo de procuras e encontros.Tudo. Menos a demora em buscar, os sinais do abandono da procura, o possível esquecimento.De meu esconderijo, continha o impulso em sair e chamar a atenção de meu buscador, lembrando-o afinal, de minha existência. Continha-me, expectante. Via aqui e ali, crianças saindo de seus recantos, provocantes, numa arrogância que mal encobria suas inquietudes, entregando-se à captura antes que a alegria da brincadeira se transformasse em ansiedade e aflição.
Aprendíamos, no esconde-esconde da infância, a alegria do ocultamento, que só podia ser experimentada porque havia a presença de um outro a nos revelar.

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domingo, janeiro 04, 2004

Amores Raros.

Sou de amores raros. Sempre fui. Parte de mim é irremediavelmente solitária, fugidia mesmo, temperamento mais reservado, talvez. Já outra parte, essa não, essa se esconde, pois amar exige um desvendamento que não me é fácil.
Amar é difícil para quem tem um coração medroso. Se o medo advém do receio de uma violação ou do temor que nos seja roubada a alegria da secretude, isso eu não sei.
Na verdade, nem mesmo sei se quando amamos saímos do esconderijo de nós mesmos ou se, ao amar, queremos é companhia para entrar nele.

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